A Vida Marinha com Steve Zissou

Existem cineastas que precisam delimitar seus universos para trabalhar. Mais que isso, precisam construi-los, moldá-los para que eles sirvam a seus fins. O universo onde acontecem os filmes de Wes Anderson está em algum lugar melancólico entre a nostalgia e a comédia. Anderson usa cenários, figurinos e música para compor o mosaico onde irá lançar seus personagens. À medida que seu prestígio aumenta, o cineasta se permite mais. A Vida Marinha com Steve Zissou radicaliza as experiências de seus filmes anteriores. Não abre concessões. O que se restringia a um ambiente colegial (Três é Demais, 1999) ou familiar (Os Excêntricos Tenenbaums, 2001) ganha dimensões multiplicadas neste novo trabalho. Em Zissou, o mundo inteiro é filtrado aos olhos do autor.

Somente neste mundo inteiro multicolorido, estilizado, triste, os dramas de Steve Zissou conseguem tomar forma mais precisa. Sem a preocupação com verossimilhança e plausibilidade (que talvez sejam temerosas para o diretor), é que Anderson pode dissertar – mais uma vez – sobre orfandade, perdão e família, seus temas mais caros. Zissou descobre o seu filho perdido (?) havia 30 anos e se retira: Life on Mars?, de David Bowie, é a trilha sonora para um momento de isolamento, reflexão. A família inventada pelo mergulhador havia ganho um integrante mais legítimo do que todos os outros. E a chegada dele faz Zissou questionar a relevância de sua vida. E faz alguns acharem que concluíram suas missões.

É curioso perceber que Bill Murray esteve nos três últimos filmes de Anderson, mas só agora ganha um protagonista. E Murray talvez seja quem melhor encarna o espírito desse vácuo onde o diretor situa seu universo. Ele tem a velocidade, os trejeitos, a essência dos filmes de Wes Anderson. Sua interpretação aqui está no limite entre o dramático e o cômico, o realista e o fantasioso, o comum e o exagerado. E é dessa indefinição que Murray se apropria para inventar seu Zissou. A brincadeira com essas fronteiras está por toda parte, desde a concepção do navio (a cena do passeio pelos cômodos é particularmente muito boa) até as intervenções de Seu Jorge, cantando Bowies em português. O absurdo é subterfúgio para Anderson (assim como o corroteirista Noah Baumbach) se esconder. Algo genial é a utilização dos efeitos visuais para reforçar a abstração.

A velocidade alterada e o estabelecimento de uma aura fantástica limitam e muito o alcance do filme sobre a platéia. Anderson filma para poucos e não está preocupado com isso. Trabalha na criação de uma narrativa própria: aqui ele monta seu filme como diário de viagem (assim como Tenenbaums assumia forma de livro). É capaz de trocar o tom a toda hora (a cena final dos invasores no navio é quase uma homenagem àquelas comédias malucas dos anos 60), e é um ás em congelar a ação para criar momentos onde assume sua tristeza e pede presença. Assim como Bill Murray (e boa parte do elenco, em escala menor) se alimenta desse campo estranho e completamente novo para se criar dentro do filme, é aí que Anderson conquista seus não muitos espectadores. A identificação surge de algo muito pouco provável, mas extremamente entendível. Estranho, né?

A Vida Marinha com Steve Zissou EstrelinhaEstrelinhaEstrelinha½
[The Life Acquatic with Steve Zissou, Wes Anderson, 2004]

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