O cinema vive de ciclos. A cada temporada, gêneros, estilos, temáticas e formatos são revisitados e, se os precursores dão certo, os revivals se reproduzem mais rápido do que um Gremlin. Em 2003, Danny Boyle ressucitou sua carreira – e de quebra um gênero – com Extermínio, onde um vírus se espalha transformando a maior parte da população da Inglaterra em seres mortos-vivos que se alimentam de gente para continuar mortos-vivos. O filme tinha um punhado de razões para dar certo: um roteiro bem escrito, com especial talento para o suspense, um cenário desolado como nos clássicos B sobre holocaustos futuros, um diretor com habilidade para comandar câmera e montagem, e um jovem protagonista talentoso, que se especializou em personagens perturbados. Foi o renascimento do filme de zumbis.

O gênero surgiu no fim dos anos 60 pelas mãos de George A. Romero, que até o lançamento de Extermínio, ao longo de três décadas, havia dirigido três filmes que mostram, um a um, a ascenção dos mortos-vivos sobre o planeta. A cada filme, Romero elaborava seu exército de zumbis, moldando-os numa poderosa crítica política à sociedade do século vinte, à mesma medida em que instituía toda uma mitologia do horror. A revitalização do gênero gerou dezenas de filhotes nos anos seguintes, sendo o melhor justamente um remake de um dos clássicos de Romero: Madrugada dos Mortos, dirigido pelo então estreante Zack Snyder em 2004. Bastante fiel ao material original, que já estava pronto, Snyder pôde se dedicar ao acabamento, criando um filme de zumbi de primeira, forte, delicioso e bem feito.

Com pelo menos dois novos clássicos bem recebidos no mercado, foi a vez do próprio Romero voltar a seu habitat, abandonado havia vinte anos. Terra dos Mortos não apenas cumpre um papel nostálgico de resgate histórico como se transforma no maior filme político de 2005, um libelo contra o totalitarismo, o imperalismo e a sociedade de consumo, visto como um ataque frontal ao governo Bush. Mas, mais do que um exercício de política, o filme levanta questões ainda maiores, ao reinventar a mitologia dos zumbis, cuja barbárie ecoa os princípios da formação das sociedades, com os mortos-vivos começando a demonstrar consciência e, pela primeira vez, se organizando num grupo. A força metafórica do filme é devastadora. Romero fez com que suas crias ganhassem um motivo e buscassem um improvável futuro.

Depois de Terra dos Mortos, difícil fazer algo à altura explorando esse terreno, mas dois espanhóis, donos da terra que faz o melhor cinema de horror da atualidade há cerca de uma década, resolveram beber da mesma fonte. Jaume Balagueró, diretor do bom A Sétima Vítima, e seu colega Paco Plaza, colaram dezenas de citações e entregaram [REC]. A dupla imaginou um filme que unisse: a) a paixão de nossa sociedade atual pelo registro; b) a paranóia química; c) os filmes de zumbis. Muita coisa para ser amarrada, mas o resultado é impressionantemente feliz. Uma equipe de TV – repórter e cinegrafista, retratados com bastante fidelidade, coisa rara – acompanham bombeiros numa chamada até um prédio onde uma mulher parece ter sido atacada, que em seguida é isolado pelas autoridades com todos dentro. A partir daí, a colcha de referências vai se avolumando.

Com várias seqüências assustadoras, tanto pelo domínio da imagem quanto do suspense, o filme cumpre sua função, mas padece por parecer muito com muita coisa feita nos últimos tempos. Ou seja, parece um plágio múltiplo. O formato é da câmera na mão, o que ecoa A Bruxa de Blair, inspiração que fica mais explícita na seqüência final, quase uma citação do filme mais revolucionário dos anos 90. A paranóia militarista tem muito de Extermínio e a lógica dos zumbis remete diretamente aos filmes de Romero mais antigos, sem preocupação com ecos políticos. Ainda que não comprometa o resultado, essas comparações reduzem bastante o impacto e o filme sofre por isso.

Mas a frustação que [REC] pode despertar não é maior do que a decepção causada pelo novo filme de Romero, sua quinta incursão pelo universo dos zumbis. Diário dos Mortos é um retrocesso inexplicável tanto na mitologia quanto no quosciente político do gênero. Não há mais os zumbis conscientes ou a sociedade barbarizada. Estamos de volta a um status anterior, onde a única atualização é na insipiente reflexão que o diretor tenta fazer sobre nosso caso de amor com o registro e a informação. Um punhado de estudantes de cinema gravam um filme de múmia enquanto a mídia começa a divulgar casos de mortos que ressucitam e atacam os vivos.

O grupo começa a encontrar o exército de zumbis à medida em que um deles resolve tomar para si o papel de registrar tudo o que acontece com sua câmera. Os mortos-vivos são redimensionados a papéis de figurantes. O que incomoda não é ignorar a cronologia porque isso não era necessário, mas voltar a um status primário com discussões muito mais rasas. Desta vez, só interessa a Romero essa obsessão pela informação, ou, mais do que ela, pela divulgação. Seria um viés interessante a explorar caso o texto convencesse, mas as frases feitas, o engavetamento de clichês, as atuações medíocres e quase nenhuma verossimilhança no comportamento dos personagens limitam esse a um filme de terrorzinho adolescente. Cloverfield, com muito menos, fez uma reflexão bem mais eficaz sobre o poder da imagem. Talvez não haja mais muito a acrescentar ao universo dos mortos-vivos. Talvez o poderio crítico que dessa subespécie de cinema já tenha atingido seu ápice. Talvez, e eu lamento muito em dizer isto, Romero já tenha dado toda a contribuição que poderia ao gênero.

Diário dos Mortos Uma estrela
[Diary of the Dead, George A. Romero, 2008]
[REC] Uma estrelaUma estrela
[[REC], Jaume Balangueró & Paco Plaza, 2007]

Comentários

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13 comentários sobre “A volta dos mortos-vivos”

  1. Cara, parabéns pela crítica. Muito legal, bem escrita.
    Mas discordo 100% em relação a Diário dos Mortos. Hehehe.
    Diário dos Mortos para mim é um filme extremamente político, só que nem tudo está na superfície (Diferente dos filmes anteriores do mestre Romero, Bruiser e Terra dos Mortos. Não muito diferente da sua trilogia inicial de filmes de zumbis: Night, Down e Day).
    O filme me fez lembrar muito o Saramago e principalmente seu Ensaio Sobre a Cegueira.
    A diferença é que, em Diário dos Mortos, os personagens “enxergam”, ao invés de ficarem cegos. Só que enxergam através de uma câmera, sempre distantes e distanciados da realidade, por mais próxima que ela esteja. Crítica brutal a sociedade, de um modo geral. Além de um filme irônico e com muito humor negro, além de um visual brilhante. E o final é um soco no estômago.
    É um ensaio sobre a Vida e a Morte, sobre a Imagem, e sobre a nossa existência. Melhor filme do ano, e melhor filme de terror que vi na vida.

  2. DIÁRIO DOS MORTOS é um filme altamente maduro, e cheio de críticas politico/sociais, ou seja, é MUITO G. Romero! É ótimo, não é trash, pelo contrário, é muito bem feito e bem cuidado. Não tem aqueles ‘herois’ nem violões, tem apenas pessoas reagindo a situação.

    Assistam sem preconceito e prestem atenção:

    Quando as pessoas vêem um acidente, elas param pra AJUDAR ou apenas para OLHAR?

    É isso aew… abraço.

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