Se um dia eu fosse condenado a assistir filmes de somente uma fase da história do cinema, a época que eu escolheria certamente seria a do cinema mudo. Não sei exatamente o porquê, mas meu amor pelos filmes silenciosos é gratuito e absoluto. Alguns deles moram até hoje nas minhas listas de melhores de todos os tempos, como Aurora, de F. W. Murnau, e A Paixão de Joana D’Arc, de Carl Theodore Dreyer. A II Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, que acontece até domingo na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, então, é um presente delicioso. Mais ainda porque muitos filmes ganharam trilha sonora ao vivo. Vi algumas sessões e devo assistir a mais algumas.

Yasujiro Ozu
Um Garoto Sincero EstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
Tokkan Kozo, 1929
Yasujiro Ozu

Antes de se tornar um dos maiores, senão o maior cineasta japonês, com seus filmes sobre os microversos familiares, Yasujiro Ozu dirigiu muitas comédias curtas, como este Um Garoto Sincero, delicioso exercício de timing e de simplicidade. A história é a de um homem que seqüestra um menino, mas não sabe como controlá-lo e o enche de doces e brinquedos, o que faz com que ganhe uma indesejada simpatia do garoto. A relação entre os dois é como a do Vagabundo e do menininho em O Garoto, de Charles Chaplin, trocando o melodrama por uma comédia tanto ingênua quanto anárquica, como se o tom do filme obedecesse a regras e lógicas de uma criança. Ozu já revelava aqui sua habilidade para contar histórias do cotidiano e para a direção de atores. O garotinho Tomio Aoki ficou tão famoso que mudou seu nome para Tokkan Kozo, título original do filme, e trabalhou em alguns longas de Ozu nos anos seguintes.

King Vidor
O Grande Desfile EstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
The Big Parade, 1925
King Vidor

Se o Oscar tivesse sido criado alguns anos antes, este filme dificilmente perderia o prêmio principal. O Grande Desfile é um romance épico, um filme de guerra questionador e o primeiro grande marco na carreira de King Vidor, um cineasta de primeira. Pode parecer datado para quem só vê o cinema de hoje, mas é um filme que está na base de tudo. A cópia exibida respeita as marcações de colorização, reproduzindo o filme nos tons em que ele foi exibidos nos cinemas à época do lançamento. Dividido em três atos bastante diferentes (a família, o romance e a guerra), o longa guarda um impacto grande para as cenas de batalha, com uma sucessão elaboradíssima de truncagens, efeitos e uso de material de arquivo. O filme apresenta ainda uma visão bem moderna para a guerra, passando longe de criar heróis tradicionais e subvertendo o patriotismo com cenas pouco convencionais (soldados de bunda de fora tomando banho) e um espírito cômico em boa parte do filme. No epílogo, além da mutilação ser usada como uma crítica ao belicismo, há uma cena impressionante: um flashback, algo que me parece bastante ousado para a época, onde a personagem da mãe refaz na memória a vida de seu filho.

Kenji Mizoguchi
A Marcha de Tóquio EstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
Tokyo Koshin-kyoku, 1929
Kenji Mizoguchi

O curta de Kenji Mizoguchi começa como uma sinfonia da cidade, com imagens e texto que remetem aos primeiros documentários, mas logo A Marcha de Tóquio assume os ares de um melodrama convencional, onde incomoda a sensação de que ali havia o roteiro de um longa espremido em 22 minutos. A novela em que o filme se baseia começa com uma questão social de diferença entre classes para um tom ainda mais dramático quando entra numa esfera familiar. Parece bastante influenciado pelo cinema e pela literatura ocidentais, mas ainda assim, já guarda elementos do cinema que Mizoguchi defenderia nos anos seguintes, como a questão da mulher.

Minoru Murata
A Sereia EstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
Muteki, 1933
Minoru Murata

A Sereia começa bastante curioso, com a presença de vários rostos ocidentais num filme mudo japonês. Rapidamente percebe-se o quanto de ocidental o filme emulou, sobretudo em seu roteiro. O longa de Minoru Murata volta a ficar muito interessante quando aparecem as marcas expressionistas de sua fotografia (e na maquiagem do personagem norte-americano, vivido por um japonês), com closes macabros e jogos de sombras. A trilha criada pelo músico Cid Campos, que acompanhou ao vivo a exibição, começou parecendo deslocada, mas funcionou perfeitamente na meia hora final, quando o filme assume um tom tenso e extremamente forte.

Comentários

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4 comentários sobre “Cinema Silencioso”

  1. Olá,

    Realmente assistir a filmes mudos no cinema é uma experiência fascinante. Deveriam realizar mais mostras como essa.

    Agora falando sobre circuito: qual é a sua expectativa em torno de La león, lançamento da Moviemobz? Eu vi e gostei. O cinema de Otheguy remete a Bresson, Malick e outros.

  2. Gosto bastante de filmes mudos. Acho genial quando se consegue passar uma mensagem inteira, sobretudo as mais complexas, sem uma fala sequer. Pena que eles sejam tão difíceis de se achar.

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