É difícil escrever sobre Colegas sem ser mal interpretado. É difícil escrever sobre Colegas sem deixar de ser condescendente. O filme de Marcelo Galvão coloca o crítico e o espectador numa encruzilhada moral, onde os valores da produção se confundem com os valores pessoais de cada um. O longa é um road movie que acompanha as aventuras de um trio de portadores de Síndrome de Down, que fogem da instituição onde vivem, roubam um carro e tentam realizar seus maiores desejos. De um lado, temos uma obra corajosa, que assume o risco de colocar esses três atores à frente das câmeras e mais: à frente de um filme na condição de protagonistas. Galvão ajuda a dar voz a uma questão que a sociedade não faz questão de lembrar ou de discutir. Dentro de uma embalagem leve, de comédia de aventura, cheia de referências a cinema, o diretor usa o filme como espelho da hipocrisia da sociedade, denunciando os preconceitos e reducionismos que circundam a questão.
De outro lado, temos um diretor que não se furta à opção de expor seus atores. E essa exposição, por mais que pareça ter intenções nobres, não deixa de ter um caráter exploratório e, o pior, tão hipócrita, preconceituoso e reducionista quanto o que o filme pretende denunciar. Ao colocar Stalone, Aninha e Marcio como “palhaços assaltantes”, Galvão, que tem um tio portador de Down, parece querer provocar a sociedade e sua visão estereotipada do que é “diferente”, mas ao mesmo tempo reforça e acentua essa “diferença”. Nada muito longe do que alguns humoristas de stand-up brasileiros fazem e – não raramente – precisam explicar suas piadas. O tratamento que o roteiro do filme dá ao caso da fuga dos personagens é frágil tanto na cobertura jornalística (a imprensa, mais uma vez, muito mal representada pelo cinema) quanto enquanto questão policial (com personagens completamente dispensáveis que não contribuem para o filme nem para o que ele levanta).
O roteiro, por sinal, é o grande problema de Colegas. Está sempre em crise. Uma das maiores idiossincrasias do filme é assumir um tom de fábula e tentar levantar debates. Isso está impregnado no longa, desde a apresentação com uma narração em tom de conto de fadas de Lima Duarte até o anacronismo do roteiro. Estamos numa época em que Raul Seixas está no auge, mas os atores citam frases de Tropa de Elite e Cidade de Deus, filmes realizados depois da morte do cantor. Se esse tratamento fabular garante uma parcela lúdica, também se transforma num lava-mãos para diretor e roteirista, que não precisam assumir responsabilidades já que tudo ali teoricamente mora no plano da fantasia. Então, faz muito sentido que uma das primeiras paradas do trio seja num circo porque muito do que acontece a partir dali assume esse caráter festivo. E toda essa opção entra em conflito com a flagrante necessidade de se legitimar pela denúncia.
Por outro lado, os três atores são adoráveis. Ariel Goldenberg, Rita Pokk e Breno Viola têm, cada um à sua maneira, pelo menos uma cena em que brilham naturalmente. Quando são espontâneos, que é quando o filme funciona melhor. Ou ainda, que é quando o filme funciona alguma coisa. Quando Galvão tenta dirigi-los ou impor um roteiro-padrão a eles, o negócio desanda. As referências cinematográficas parecem tão jogadas quanto a própria história, que ganha uma narrativa esquizofrênica e atravessa uma fauna de coadjuvantes que reforça outras dezenas de estereótipos. No fim das contas, este é um filme em que falta cinema, mas sobra intenção.
A própria realização do filme, por si só, já desperta atenção. Colegas deve atrair espectadores curiosos. Pessoas que têm filhos e irmãos portadores da Síndrome de Down deverão, de alguma maneira, se sentir representados pelo filme. Ou então, rejeitar o retrato que o longa faz. Então, a suposta nobreza na intenção de se fazer o filme vem junto com a certeza de que ele seria comentado, debatido, e de que um material delicado e controverso colocaria oportunamente seus realizadores sob os holofotes. O mais grave é que um tema como o do filme, além de matéria-prima, pode servir como escudo para quem questiona a obra. Mais uma vez, é difícil escrever sobre Colegas sem ser mal interpretado, sem parecer estar contra “a causa” ou sem parecer ser insensível à questão dos portadores de Down, mas ainda assim talvez “raso” seja o adjetivo mais fiel ao filme que Marcelo Galvão dirigiu.
Colegas ½
[Colegas, Marcelo Galvão, 2012]
Parabens pela critica. Apesar de não ser um frequentador assiduo de cinema, a critica esta muito bem fundamentada. Consegue transmitir com clareza e sem agressão, o conteúdo do filme, sua estrutura e tratamento dado, a um tema tão dificil. Não assisti o filme e nem tenho parentes com Down, mas a critica me mostrou que se não perderia muita coisa, se deixar de assisti-lo.
Assisti e dormi. Muito ruim! A crítica vale muito mais a pena do que o filme per se. Parabéns!
É bem por aí, Diego.
Estou bastante motivada a assistir ‘Colegas’. Adorei a crítica. Depois que a li minha curiosidade triplicou. Bjs!
Bela resenha, Chico. Pelo trailer, me pareceu um filme corajoso na concepção, mas lugar-comum na execução. Ainda assim,fiquei curioso de ver
Quando vir, passa aqui pra deixar sua opinião, julio.