Doméstica

Doméstica é um filme que só se revela mesmo em sua última história. A frieza com que os personagens convivem e aparecem para a câmera é um retrato da artificialidade das relações entre boa parte de patrões e empregados. Os silêncios que o diretor permite – e até explora – neste episódio final, refletem um cotidiano cheio de vazios. Uma relação que se construiu a partir de uma infância comum e que se metamorfoseou para atender a rígida divisão de classes que o Brasil mantém em suas entranhas. As histórias anteriores provam que pode haver intimidade, proximidade e carinho em relações dessa natureza, como o episódio de Flávia, mas as conexões geralmente tendem a ser espelhos de uma sociedade de castas, onde estar ali, dentro daquelas casas, parece um “prêmio da vida”, uma oportunidade, deixando clara a visão “diferenciada” do papel das domésticas pelo senso comum.

O filme é lançado nos cinemas no exato momento em que a PEC das Domésticas – a proposta de emenda constitucional que amplia os direitos destas trabalhadores e que garante, entre outras coisas, o pagamento de horas extras – explodiu como uma bomba na sociedade escravagista brasileira. As novas definições colocam em xeque o papel da empregada que dorme em casa e a natureza de sua relação com as famílias que “transformaram suas vidas”, muitas vezes “condenadas” a pequenas cidades do interior. O filme de Gabriel Mascaro dá vários exemplos de que a “dádiva” que estas mulheres (e homens) receberam tem dois pesos, duas medidas e uma vida cheia de ausências e restrições. Ao mesmo tempo em que ganham seu espaço num lado “mais nobre” da sociedade, as domésticas estão presas a sua condição.

Por mais que se tente manter a visão de um documentário nu, sem muitos artifícios, o diretor Gabriel Mascaro entende muito bem dos efeitos de se entregar uma câmera para que os adolescentes registrem uma semana nas vidas de suas empregadas domésticas. A voz do filme não é a voz das “secretárias do lar”, mas a de seus patrões, ainda que eles supostamente guardem uma visão mais pura ou ingênua do jogo de poder. No capítulo dedicado a Lena, a jovem que tem uma filhinha que é cuidada por sua patroa, a empregada fala duas ou três palavras, quase nunca diretamente para a câmera. A história contada ali não é a história que ela quer contar, mas a história dela contada por outros do jeito que esses outros melhor entenderem.

Aos poucos a proposta do diretor revela a herança que os pequenos patrões carregam dos tempos de senzala, reproduzindo um comportamento viciado, mostrando que praticamente desconhecem as pessoas com quem convivem diariamente há anos. Nos dois últimos episódios, Mascaro parece assumir um papel de justiceiro defensor das domésticas, relegando aos patrões (adultos ou adolescentes) papéis ridículos, como a menina que se apresenta como “faço teatro” enquanto sabe que o foco das filmagens é seu empregado Sergio ou a mãe dela, que exemplifica bem o entendimento o conceito do negócio: “ele senta na minha mesa, ele come da minha comida”. A intenção é mostrar que não existe preconceito naquela casa, mas o efeito prático deste discurso é algo como “olha como eu fui boa para ele”.

O jovem que toca Bob Dylan no violão olhando para o infinito, depois do retrato que o filme apresenta de sua empregada, é eleito como o vilão de Doméstica. Seu descaso, sua artificialidade, seu tratamento de funcionário público com Lucimar, que vive na casa de sua família desde que ele tinha um ano de idade, é modelado para culpá-lo. Mascaro utiliza de certo maniqueísmo para construir o personagem, o que fica claro quando se vê uma foto de divulgação em que ele toca uma música para Lucimar, que sorri. Uma cena que não entrou na edição final do longa e que, cortada, ajuda ao objetivo compor um retrato cruel destas relações que o filme retrata. Talvez esse maniqueísmo seja necessário para fazer do filme um diagnóstico de um tipo de comportamento inerente à sociedade brasileira e um documento importante sobre as novas formas de servidão.

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[Doméstica, Gabriel Mascaro, 2012]

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