Encarnação do Demônio

Numa cena bastante significativa, depois de sair da prisão onde passou as últimas quatro décadas, Zé do Caixão diz para seu assistente Bruno: “40 anos, Bruno. 40 anos de resistência”. Muito mais do que a continuidade da história de seu personagem, José Mojica Marins estava falando ali de si próprio. Um dos realizadores independentes mais importantes do país só conseguiu fazer o filme que fecha a trilogia de sua criação mais famosa depois de quarenta anos – mesmo com sua redescoberta como ícone cultural mundial há mais de uma década e meia. O simples fato de Encarnação do Demônio existir já é motivo de grande e justa comemoração, ainda mais com a embalagem de primeira linha que o projeto recebeu, mas um pouco de parcimônia faz bem à saúde.

Se o quê artesanal dos dois primeiros longas, dirigidos nos anos 60, era um dos atrativos do personagem, esse encantamento pelo bruto foi trocado por outro tipo de encantamento, desta vez pela concepção visual bastante competente. Nesse novo filme, Mojica se viu cercado de colaboradores apaixonados, realmente empenhados em remodelar o universo do Zé do Caixão. Fotografia, montagem, som, e, sobretudo, a excelente direção de arte de Cássio Amarante fazem do filme um produto extremamente cuidadoso, com momentos deslumbrantes. A trilha de André Abujamra e os efeitos visuais, simples, mas muito, muito eficientes, completam o pacote. É um filme realmente bonito, todo bem acabado, sem senões em seu arrojado visual.

O conceito continua complexo: muito mais do que um assasino maléfico, ele um idealista, um visionário em busca da pureza perdida. Mas o que me incomodou um pouco foi que Zé do Caixão ficou meio perdido nesse cenário tão bonito. A interpretação do velho mestre ainda se utiliza dos mesmos trejeitos de 40 anos atrás e parece não acompanhar essa evolução de linguagem. Mesmo sendo fiel a sua filosofia do sangue, o personagem me pareceu deslocado. As cenas de tortura, que seguem uma linha mais atual do cinema de terror, parecem querer tentar modernizar as coisas – e até conseguem – mas ainda me senti desconfortável diante disso tudo.

A cena da visita ao Purgatório, assim como a descida ao Inferno no filme anterior, é filmada com bastante competência, mas merecia ter sido encaixada melhor na trama. A idéia de aproveitar Jece Valadão, que morreu no decorrer da filmagens, criando um irmão para seu personagem deixou as coisas um pouco confusas. Embora o resultado não seja tão equilibrado, o filme tem momentos muito bons, como todas as cenas em que Helena Ignez aparece, soberbamente caracterizada, ou no final, quando o futuro lança suas possibilidades. A festa macabra para marcar a volta do maior maldito do cinema brasileiro é mais do que justa.

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[Encarnação do Demônio, José Mojica Marins, 2008]

Comentários

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7 comentários sobre “Encarnação do Demônio”

  1. Não mudaria nada nessa obra “genial”…

    Só o título: A Encarnação do Mau Gosto!

    Escatológico mau gosto, aliás. Sorry, mas não é porque agora teve verba pra viabilizar todos os seus delírios nojentos e grana pra uma fotografia bacana que o “José do Caixão” virou um grande “cineasta”. Nem todo hype do mundo vai me convencer de que o que é essencialmente CAFONA e TOSCO é na verdade um puta dum “pilar do cinema undeground” aqui do Brasa.

    O que é ruim é ruim com qualquer orçamento. Cocô embrulhado em papel de seda continua sendo… uma merda!

    Outra sugestão de mudança de título para este ano, infelizmente discordando do Chico: “Eu Não Estou Lá” basta acrescentar o adendo ao nome da obra: “Assistindo aquela baboseira” Agora, sim. Ficou perfeito! haha :oP mas isso é outro papo!

    Chico, só pra esquentar a discussão e pegar no seu pé, hahaha!

    grande abraço,
    Luiz. 🙂

  2. >As cenas de tortura, que seguem uma linha mais atual do cinema de terror, parecem querer tentar modernizar as coisas – e até conseguem – mas ainda me senti desconfortável diante disso tudo.

    Idem.

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