O nome do pernambucano Hilton Lacerda ajudou a construir um certo cinema jovem brasileiro, que se desenha desde a segunda metade da década de 90. São deles os roteiros de filmes importantes como Baile Perfumado, Amarelo Manga e A Festa da Menina Morta. Parceiro de longa data de Cláudio Assis, Lacerda assinou os roteiros de todos os seus longas. A estreia na direção aconteceu com o documentário Cartola – Música para os Olhos, onde dividiu as rédeas com outro colaborador, Lírio Ferreira. O belíssimo Tatuagem, vencedor do Festival de Gramado, libelo libertário sobre um grupo de teatro dos anos 70, no Recife, é sua primeira ficção como diretor. Para falar do processo de criação do filme, bati um papo com Hilton, que vocês acompanham aqui.
Você tem uma longa experiência como roteirista. Como surgiu a vontade de virar diretor?
A idéia de ser diretor sempre esteve presente em meu horizonte. Já havia dirigido dois curtas (Simião Matiniano – O Camelô do Cinema e A Visita), além da experiência narrativa com Lírio Ferreira no Cartola, Música Para Os Olhos. Mas o roteiro terminou se tornando mais urgente, mais pontual – principalmente nas parcerias/cumplicidades que comecei a fazer, com Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Kiko Goifman, Matheus Nachtergaele… De certa maneira essa cumplicidade era uma contribuição muito intima nas minhas convicções narrativas. Mas existem alguns projetos que você elege como muito, mas muito, pessoais. E Tatuagem se insere aí: a necessidade de colocar em prática conceitos pessoais com relação ao modo e ao sentimento de determinada condução. E pode parecer um tanto estranho, mas adoro set de filmagem – não raro os roteiristas declaram aos cantos a repulsa estar presente a execução de seus roteiros. Vai ver que trabalhar com quem você se afina muda esse eixo. Vai ver que é isso.
Você demonstra muita segurança nesta ‘nova’ função. Filma cenas fortes com muita elegância e fluidez, mas sem perder um quê popular. Teve algo – ou alguém – que te inspirou?
O cinema nacional, principalmente o segundo momento do Cinema Novo e do cinema marginal, sempre me inspirou do ponto de vista de construir uma linguagem específica. Me incomoda o distanciamento que estamos tomando de nossa cinematografia. Claro que isso não é geral, mas é interessante como a cartilha universal, em muitos aspectos, tem direcionado uma conduta bastante espelhada em modelos aceitos, comprovados, aplaudidos – esteja isso no universo do cinema convencional, esteja isso dialogando com o cinema mais inventivo. Às vezes, acredito que estamos nos acostumando a dar conta ao olhar do outro. A cartilha pode ser muito útil e confortável, mas não me satisfaz. E acredito que deveríamos estar mais preocupados em corromper que em concordar.
E nesse processo muitos filmes foram importantes. Mas A Lira do Delírio (Walter Lima Jr) e Sem Essa Aranha (Rogério Sganzela), durante minhas buscas, foram fundamentais. Mas claro que (Tsai) Ming-Liang, Apichatpong (Weerasethakul), João Pedro Rodrigues, Carlos Reichenbach, (Pier Paolo) Pasolini, (Luis) Buñuel e todos aqueles que fizeram e fazem parte de minha educação sentimental estão, de certa forma, ali presentes. Acredito que apreender uma narrativa é manipular conhecimento em busca de um caminho próprio.
Tatuagem mantém um certo espírito “anarquista” que aparece mais violentamente nos filmes que você escreveu para Cláudio Assis. Mas no seu filme, essa anarquia tem outro tom, mais empático. Qual a diferença principal entre escrever um filme que o Cláudio dirigiria e um totalmente seu?
Os roteiros que escrevi para Cláudio Assis fazem parte de uma parceria bastante estimulante. Primeiro pela liberdade que tenho ao escrever e mudar eixos e explorar possibilidades. Esses projetos têm muito de pessoal. Mas existe um olhar também muito pessoal de Cláudio, uma forma bastante original de dirigir e colocar suas ideias. Coisas que coloco podem ganhar cores diferentes pelas mãos de Cláudio, e outras são aquelas que coloco certo grau de virulência, pois quando estamos trabalhando em parceria estamos trocando confianças e conhecer o outro faz parte desse processo. Assim, digamos que usamos de armas diferentes quando propomos nosso olhar.
O roteiro de Tatuagem apresenta o cu como o instrumento revolucionário máximo. Como surgiu essa idéia?
A idéia do cu faz parte dessa estratégia de transformar o próprio corpo em instrumento de mudança e de provocação. Mas tinha, desde o início, uma intuição em procurar por onde minhas idéias podiam ganhar uma dimensão banal e unificante. O cu não é uma sacada tão original, mas bastante interessante no âmbito específico do filme. Além de achar bastante curioso como o cu foi elevado a uma dimensão depravada no Brasil. Em Portugal o cu está em todo parte; o cu americano é quase um ente querido; na Rússia, tem cu que quer ter dentes; na França, ele tem valor intrínseco. No Brasil, ele é relevado. Elegê-lo como símbolo de resistência tem sua graça. E sua eficiência.
É impossível sair do cinema sem cantarolar “Polka do Cu”. Como surgiu a letra?
As letras e as idéias das letras estão sugeridas no roteiro. Quando chamei DJ Dolores para participar da composição do filme conversamos bastante sobre o que estava ali, enquanto palavra, e o que eu pretendia. A partir de nossas conversas, e com total liberdade de Dolores – somada a um talento bastante provocador – ele construiu essa polka. A única coisa que eu queria, e ele concordava – e até radicalizava – é que a composição precisava ter um apelo teatral popular, que fosse ouvida e logo depois ficasse colada na imaginação. Outra coisa que pedi era para não perder a brincadeira – bastante pobre – de aproximar o “tem cu” com o “thank you”.
Tatuagem tem um fortíssimo lado musical. Você escreveu as músicas? Quais as composições feitas para o filme?
Desde o início, quando estava mais ou menos fechado o argumento do Tatuagem, a idéia de uma musical rondava o projeto. Comecei a sugerir as composições, mas estava claro para mim que a trilha pertencia ao DJ Dolores, com quem tenho uma parceria bastante longa. As músicas dos espetáculos foram realizadas para o filme – mesmo aquelas de cunho popular foram revisitadas por Dolores e pelo grupo Chão de Estrelas. E precisávamos aprontá-las anteriormente, pois a maioria das músicas são cantadas ao vivo. As músicas dubladas são apenas as que fazem parte de espetáculo de dublagem. No caso a composição “Álcool”, que é do DJ Dolores, e no filme é dublada pelo ator Diego Salvador.
Outras composições foram feitas ou emprestadas ao filme a partir das escolhas de Dolores, como “Valete” (de Lirinha, e interpretada por Ângela Rô Rô, Otto e o próprio Lirinha), “Volta” (de Johnny Hooker, interpretada ao vivo por ele e seu guitarrista) e “Eu Vou Tirar Você da Cara” (do Feiticeiro Julião).
As músicas mais tradicionais, como “Esse Cara”, de Caetano Veloso (interpretada ao vivo por Irandhir Santos e acompanhada por Yuri Queiroga), “A Noite de Meu Bem”, de Dolores Duran, e “Bandeira Branca”, de Almir Rouche, na clássica versão de Dalva de Oliveira, estavam indicadas. Mas tudo fazia parte da construção musical, que procurava mergulhar numa visão bastante contemporânea de determinado tempo, revisitando standards e experiências (a última composição do filme, antes de “Bandeira Branca”, é uma homenagem a o músico Edgar Varèse.)
Seu filme oferece uma nova direção para o cinema com temática gay no Brasil. É um filme do qual se gosta facilmente talvez porque seja libertário e não panfletário. Você teve alguma preocupação em fazer um filme não agressivo para um público, digamos, convencional?
A questão da relação homoafetiva no filme faz parte da própria estrutura em que o momento que pretendia debater se insere. Claro que minha própria vivência no universo gay me estimula a um outro olhar, não menos excessivo, mas contornado de afetividade. E como o filme está mais para a bandeira libertária e da reflexão, me interessa não abrir exceção. Interessa, sim, corromper o eixo do olhar em relação a questões da sexualidade, do pós-gênero.
O Estado brasileiro, que preferiu uma aproximação conservadora para garantir apoio e governabilidade, tem se colocado muito distante de questões que realmente norteiam questões que devem ser confrontadas e não largadas ao balanço de uma democracia sem representação. Interessa saber quem tem o olhar constrangido. E duvido muito que um público “convencional” não ache o próprio mundo agressivo. Não consigo vislumbrar esse público – me parece uma questão bastante abstrata. Mas o próprio cinema – talvez a vida – está se mostrando bastante convencional para promover o conflito que nos leva a questões bastante importantes, como a construção da civilidade.
O cinema pernambucano tem produzido alguns dos filmes mais interessantes dos últimos tempos. Tanto filmes que renovam temas quanto renovam linguagem. A que você atribui esse momento criativo?
Creio que Pernambuco teve a felicidade de, em determinado momento, somar uma onda criativa, principalmente na música e no cinema, e chamar a atenção para uma produção que há muito está sendo alimentada. Não é algo novo, mas que tem, paulatinamente, se colocado em relação a novas possibilidades de construir narrativas e estimular conteúdos na cinematografia contemporânea. Mas claro que não é apenas de criatividade que nos alimentamos. A conquista de editais e leis, a partir da pressão de classe, talvez seja a força motriz para manter esse cinema atuante e livre.
Essa é uma junção fundamental e que termina por retroalimentar a produção. E, talvez o mais importante, acredito que Pernambuco, por necessidade, conseguiu “inventar” uma forma de produzir seus filmes, onde as possibilidades da estrutura conversa muito diretamente com a capacidade de criação. Nossas deficiências procuram soluções inventivas. Creio que esses três tópicos dêem pistas sobre a força do cinema realizado em nosso Estado.
Você pode apontar seus dez filmes favoritos?
Sempre acho difícil realizar um lista de dez filmes (fossem 100 teria a mesma dificuldade). Mas vou listar aquilo, que no momento, rodam aqui em volta da cabeça:
O Leopardo [Luchino Visconti, 1963]
Crepúsculo dos Deuses [Billy Wilder, 1950]
Rio 40 Graus [Nelson Pereira dos Santos, 1955]
O Anjo Exterminador [Luis Buñuel, 1962]
As Mil e Uma Noites [Pier Paolo Pasolini, 1974]
Anjos do Arrabalde [Carlos Reichenbach, 1987]
Mal dos Trópicos [Apichatpong Weerasethakul, 2004]
Ivan, O Terrível [Sergei Eisestein, 1944]
Terra em Transe [Glauber Rocha, 1967]
Memórias do Subdesenvolvimento [Tomás Gutierrez Alea, 1968]
Já comecei a engordar a lista, mas vou deixar de lado meu sentimentalismo. Afinal, toda a lista é feita para alimentar culpas.
Hilton Lacerda é o novo cinema brasileiro!
cu, cool, cú!