Garota Exemplar

Um dos aspectos mais interessantes de acompanhar regularmente a produção de um cineasta é perceber a evolução de seu cinema. Em pouco mais de 20 anos, David Fincher dirigiu dez longa-metragens e, embora seus primeiros filmes ainda sejam os mais lembrados pelo grande público, eis um diretor que, trabalho a trabalho, procurou abrir mão de diversos maneirismos estéticos, que foram características de um modelo de cinema noventista, para encontrar uma forma mais segura e precisa de filmar.

Garota Exemplar reafirma a maturidade de Fincher, que aqui comanda a adaptação que Gillian Flynn fez de seu próprio livro. É a quinta vez consecutiva que o diretor trabalha a partir de material literário e, assim como em Zodíaco, seu melhor filme e ponto de virada de sua carreira, e Millenium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres, seu longa anterior, a linha principal é o suspense. A maneira que Fincher encontra para estabelecer, defender e fazer crescer os mistérios de uma história correta são essencialmente cinematográficos.

O longa conta a história do desaparecimento de uma mulher, aparentemente uma esposa feliz, no dia de seu quinto aniversário de casamento. Apesar de ter nas mãos uma história com elementos suficientes para garantir a atenção do espectador, o cineasta utiliza a câmera e a montagem, aspectos que costumavam ser mais exibicionistas em seus filmes mais antigos, de maneira discreta e elegante. A construção da narrativa é feita com calma, investigando os personagens e seus motivos junto com quem assiste ao filme e dando às reviravoltas da trama um tom menos espetacular e mais contundente.

Em Garota Exemplar, explorar o espaço é fundamental para determinar o tempo do filme. Sem pressa, a câmera decifra os passos de Amy e ajuda a desvendar seu sumiço e sua personalidade, da mesma maneira como faz com seu marido, Nick, dono da voz em boa parte do longa. Os flashbacks são inseridos cuidadosamente, adicionando novas perspectivas e pontos de vista à história. Fincher não acelera o ritmo nem quando o circo midiático em torno do caso ganha ares de crítica, o que pode frustrar quem espera um thriller tão histriônico quanto Clube da Luta.

Esta preocupação em desenvolver a trama se estende à direção de atores, o que garante personagens muito mais complexos do que os habituais em um filme de suspense. Rosamund Pike, cotada para o Oscar, é o destaque mais óbvio com sua protagonista cheia de camadas. Carrie Coon, Kim Dickens, Neil Patrick Harris e, sobretudo, Tyler Perry são ótimos coadjuvantes, mas é Ben Affleck, um intérprete geralmente limitado, quem mais chama a atenção. Seu “americano comum” é cheio de detalhes e nuances que o ator explora com delicadeza.

Embora acerte na maior parte do tempo, há alguns pontos de corte no filme que, de tão evidentes, parecem anunciar o fim da história algumas vezes – o que não acontece, deixando uma sensação de gordura perto do final. Talvez não acabar o filme quando ele “pede” para terminar seja uma maneira de celebrar os cinismo que atravessa toda a trama, mas parece mesmo uma tentativa de reafirmar a crítica à natureza da instituição do casamento, que é o que menos interessa nesse filme quase sempre tão interessante.

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[Gone Girl, David Fincher, 2014]

Comentários

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4 comentários sobre “Garota Exemplar”

  1. Acompanho a carreira de Fincher desde seu 1º filme e concordo que em certos aspectos seu cinema progrediu, mas ficou mais exitante? tras algum frescor? ou o atual objetivo de “sumir” da direção (palavras do próprio) não faz com que ele se torne cada vez mais “normal”? Não tenho essas respostas continuo gostando do cineasta mas espero sempre a cada novo longo uma quebra, algo diferente, ainda com ecos de seus filmes alteriores, mais digração, mais pegada, que Fincher mostre quem é, e não quem quer ser.

  2. Dizem que quando uma pessoa não sabe fazer deve se tornar professor. Crítico de cinema, acho, tem muito em comum com o saber popular. Praticamente não leio blogs de cinema, por conta de entender que há sempre uma sensação de presunção nos escritos. No filme em questão, a opinião, que respeito, mas não acato, é tão superficial que era preferível … O Fincher faz um filme, especialmente, cínico, onde há espaços para digressões bem mais aprofundadas por parte do expectador (ou eu é que estarei sendo pretensioso?).

  3. Vou ver hoje, Francis! Também acho Zodíaco o melhor filme do Fincher… E depois que li o livro, fiquei ainda mais convencida de seu talento…

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