Interestelar

William Shakespeare, nos tempos idos de 1600, já dizia que “há mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”. Mais de quatrocentos anos depois, alguns mistérios celestes já foram desvendados pelo ser humano, mas a maior parte deles continua desafiando nossa imaginação. Christopher Nolan, que sempre foi um cineasta bem esperto, mira nesse vácuo entre o que conhecemos do nosso planeta e do resto do universo para tentar responder algumas das grandes perguntas da humanidade, mas não se decide muito bem entre a ciência, uma metafísica não assumida, a mais absoluta ficção e “o poder do amor”. Interestelar nasce dessa indefinição: é um filme confuso, completamente estruturado como um dramalhão e que tem um roteiro cheio de buracos negros.

Estamos numa Terra pós-colapso global. Nos Estados Unidos, depois da “praga” destruir várias culturas, só se planta e se colhe milho. Pelo menos até que a natureza elimine também essa última alternativa. Todo mundo virou fazendeiro. A agricultura é de subsistência. Os governos caíram. O que restou deles eliminou os exércitos. E orientou às escolas a ensinar que o homem nunca foi à Lua. Para Nolan, num planeta onde a fome atinge praticamente todos, apagar os milhões gastos com militares e projetos espaciais conforta os famintos e os que ainda comem milho. Ele só não explica quem teve a ideia de lidar com uma multidão de pessoas que não têm como se alimentar, onde as revoltas seriam iminentes, sem soldados. Mas estamos numa ficção-científica, num futuro pós-apocalíptico. Nem tudo precisa ter lógica.

Spoilers a partir daqui

Em Interestelar, as probabilidades são mais elásticas do que a margem de erro do Ibope. As nuvens podem ser sólidas e ainda flutuar sobre nossas cabeças, é possível navegar ao lado de um buraco negro sem ser automaticamente destroçado e uma viagem no tempo, ou no espaço-tempo, pode ajudar a mudar o futuro sem criar realidades alternativas. Tudo bem. Embora essas liberdades que desafiam o que já conhecemos possam entrar na pasta “ainda não temos informações suficientes, então, deixa a gente divagar”, é bem difícil explicar algumas coisas mais palpáveis, como quando nossos queridos astronautas precisam de apenas alguns segundos para chegar a conclusões que os cientistas tentam alcançar há uns cinco séculos.

Ou o plano da personagem do Matt Damon.

Toda a sequência em que surge o Dr. Mann parece apenas existir para desviar a atenção das explicações pé-de-chinelo que Nolan arruma para a parte final de sua saga espacial. Fica mais fácil comprar toda a jornada metamísticocientífica do protagonista, vivido por um Matthew McConaughey que nunca tinha chorado tanto em cena, quando ainda se está tentando decifrar o que Damon fazia naquele filme e quais eram as intenções de sua personagem. Adivinhar o que existe dentro de um buraco negro, imaginar como seria a vida em cinco dimensões, fazer crer que os códigos de uma tecnologia milênios à frente podem ser transmitidos por um relógio de pulso. Nada disso é pecado. A fantasia está aí desde que as histórias começaram a ser contadas. A questão é que todo é que esse cenário se passa num filme de Christopher Nolan.

E o grande problema deste filme é o grande problema do cinema de Nolan. Para o diretor, tudo precisa ser feito em larga escala, todo filme é construído num tom solene, quase megalomaníaco. Todos seus filmes, desde Batman Begins, parecem querer ser versões definitivas para o que se propõem. E como eles têm temas divertidos como heróis em quadrinhos, truques de mágica, o mundo dos sonhos e viagem espaciais, a brincadeira inevitavelmente se perde. Em Interestelar, como em centenas de ficções-científicas, o objetivo é salvar a humanidade, mas o peso que o diretor imprime a cada cena, a construção dramática que tenta dar profundidade ao menor dos diálogos, a ideia de chamar o físico Kip Thorne para dar credibilidade a cada solução mal explicada, resumindo, essa intenção de fazer o scifi definitivo, jogam todo o trabalho para as estrelas.

Thorne assina como produtor-executivo. Ou seja, garantiu sua parte nesse latifúndio espaço-temporal, o que pode explicar a quantidade de buracos negros que ele deixou passar no roteiro. Os atores parecem dirigidos para que todas cenas pareçam muito sofridas, dolorosas mesmo, como se o filme buscasse numa base espiritual outro suporte para suas invenções pseudo-científicas. McConaughey chora. Jessica Chastain chora. Anne Hathaway chora e protagoniza um dos momentos mais constrangedores dos diálogos do filme, quando Nolan quer dar um crédito científico para o já citado “poder do amor”, como um meio confiável para tomar decisões no espaço sideral. E quem não se debulha em lágrimas vive tenso, como Michael Caine e Casey Affleck. Aliás, a quantidade de nomes de peso no elenco só parece confirmar que o diretor queria um filme importante: Topher Grace, John Lithgow, Wes Bentley e Ellen Burstyn parecem jogados, sem função real no longa a não ser para criar momentos “olha, ele também está no elenco”.

O mais lamentável é como o filme segue em frente após cada cratera no roteiro, como se pulasse num buraco de minhoca para se livrar de um planeta de explicações que ele não consegue dar. É o roteiro mais mal acabado entre todos os filmes de Nolan. O cineasta parece confiar que o espectador vá se contentar com sua condição de leigo e passar por cima das respostas que o filme não oferece, mas finge ter oferecido. Num projeto menos ambicioso, coerência não seria o mais importante. A diversão cimentaria todas as rachaduras. Mas numa obra tão supostamente fundamental, tensa, séria, como quer o diretor de Interestelar, chegar naquele final choroso é no mínimo um desrespeito com quem assiste aos 169 minutos deste filme.

Interestelar Estrelinha½
[Interstellar, Christopher Nolan, 2014]

Comentários

comentários

55 comentários sobre “Interestelar”

  1. Se o Nolan continuar nesse passo, vai ser o M. Night Shyamalan dessa década: começa com uma bela obra, ganha fãs e admiradores com ela ao passo em que vai se perdendo na própria megalomania, e com isso seus filmes decaem juntamente com sua reputação – aí, só mesmo os fãs mais fervorosos conseguem defendê-lo. Interestelar é um saco, belo para os olhos (visto em IMAX) e profundamente dispensável em todos os outros quesitos. Saudades de um A Árvore da Vida, que era lindo de se assistir e maravilhoso para fazer refletir.

  2. “Ele só não explica quem teve a ideia de lidar com uma multidão de pessoas que não têm como se alimentar, onde as revoltas seriam iminentes, sem soldados. Mas estamos numa ficção-científica, num futuro pós-apocalíptico. Nem tudo precisa ter lógica.”

    Se menciona algo sobre isso, que a NASA bombardeou milhoes. Provalmente por conta de revoltas. Só não exploram esse aspecto, como os detalhes que levaram a Terra a ter problema com oxigenio. O Kip Thorne explora esse assunto em seu livro.

    “é possível navegar ao lado de um buraco negro sem ser automaticamente destroçado”

    Sim, é possível. Não só orbitar um buraco negro, mas entrar no horizonte de eventos sem ser despedaçado. Foda ver um cara que acha que sabe um assunto fazer afirmações taxativas e estar errado. Pesquisa em sites do departamento de astronomia universidade de virgina e o departamento de astronomia universidade de maryland e vc encontra páginas que respondem perguntas sobre buraco negro.

    “e uma viagem no tempo, ou no espaço-tempo, pode ajudar a mudar o futuro sem criar realidades alternativas.”

    Não dá pra afirmar que o corpo dele não vai ao passado e isso é uma das premissas do filme: que nao podemos voltar ao passado. Ele altera a gravidade em qualquer ponto no espaço-tempo se valendo de uma estrutura capaz de ser usada como ferramenta pra isso.”Muitas variedades espaço-temporais tem interpretações que podem parecer bizarras ou desconfortáveis para muitos físicos. Por exemplo, um espaço-tempo compacto tem curvas de tempo fechadas, loops, que viola a noção de causalidade tão cara aos físicos.” Como só conseguimos experienciar o tempo de forma linear, não aceitamos esses paradoxos. Li também falando que loops espaço-tempo podem gerar eventos fora do loop. Nesse caso, acho
    que o Cooper aparecer lá em Saturno seria fora desse loop.

    “suas invenções pseudo-científicas”.

    É um filme de ficção formado por desde verdades astrofísicas e palpites baseados em estudos a mera especulações. Aliás, todo filme de ficção não seria pseudocientifico?

    1. Concordo 100% contigo, cara. Inclusive fiz um comentário aqui e não tinha lido ainda o que você postou, mas acabou que os dois comentários se complementam. Dois caras que conseguem explorar essas questões abordadas no filme de maneira totalmente intuitiva são Carl Sagan e Neil DeGrasse Tyson. Curiosamente: mestre e discípulo.

      Criticar o filme por falta de embasamento científico é uma heresia, pois mesmo com todas as liberdades criativas tomadas, o filme ainda tem os pés bem no chão.

  3. Será esquecido e vai virar poeira cósmica… tipico de filmes americanos pequenos. Os grandes filmes permanecem e sempre são lembrados. Insterestellar não foge à regra da cartilha do caça-níquel americano e segue sua trajetória oportunista mais ainda com o “coincidente” marketing da Philae e sua Rosetta pousando no cometa. A indústria de cinema estadunidense marca na agenda do mundo esse fiasco e todos caem na esparrela. Menos eu.

  4. Caros…esta é uma grandiosa criação ..se querem algo sem a palavra digamos “amor” num contexto de ficção..então acho melhor irem pensando em um roteiro alternativo tipo “Interestelar para programadores, engenheiros e físicos …não percebem que para o caminhar de uma historia deve haver um drama algo que prende a pessoa em seu imaginário!!!?…eu achei um * filme mas não fiquei preso só no drama da história mas no geral …

    1. Ninguém aqui é contra o amor em filmes, achei q cena do pai falando com a filha q já tinha a mesma idade dele muito bonita, mas a coisa perdeu a mão e ficou pura melação. Se ele quisesse fazer um filme sobre a força do amor, buscasse uma história q falasse disso, mas começar um filme de ficção científica cheio de teorias realista, indo no limiar delas para explicar tudo e depois terminar com uma churumela chorosa e mexicana não dá. Ele prometeu algo no início do filme e entregou outra ao final, isto se chama falta de unidade temática, uma falha grave em filmes e roteiros, por isso as divergências. eu não compro essa ideia, fica como Deus ex-machine, uma solução q cai de paraquedas pra resolver tudo do jeito q o autor quer e acabaou, sem coerência. Não digo ser realista, e sim coerente com os conceitos apresentados, são coisas diferentes.

  5. Achei o filme bem incrível por que gosto do Nolan… Acho até mais refinado que “A Origem” e “Memento” em algumas superfícies e acho injusto comparar com os Batman’s… Sobre as pontas, quem não ia querer fazer uma ponta em filme com três ganhadores de oscar no elenco.

    Adoro essa questão que ele levanta, li uma crítica sobre a relação com o passado dos personagens e acho que tem muito haver.

    Percebi que você não é muito fã no Nolan, né Chico… mas Respeito a crítica…

    Abs
    Fabio Allves
    http://www.vidadeblogueiro.net

  6. Chico, acho que você exagerou na crítica, e para não ser repetitivo faço minhas as palavras das respostas acima, no sentido de que uma ficção científica não é um tratado científico, pode dar-se a liberdades poéticas ao mesmo tempo em que aborda ou tangencia questões científicas, neste caso, muito pertinentes. A minha ressalva ao filme é de que ele bem poderia ter, pelo menos, meia hora a menos, sem prejuízo nenhum. Há diálogos, excessos de explicações e transições de situações realmente dispensáveis, é tudo muito explicado e justificado demais em alguns momentos, deixa pouco espaço à formulação do próprio espectador. Também não gostei do Matthew McConaughey do início até meados do filme, me pareceu deslocado no papel de um cientista/astronauta, pouco convincente; porém, parece que no decorrer das filmagens conseguiu incorporar o personagem e não vi mais esse problema. Bem, se essas ressalvas e outras não fazem de “Interestelar” um excelente ou ótimo filme, nem por isso deixa de ser um filme muito bom, que merece ser assistido, especialmente pelos fãs do gênero ou por quem se interessa minimamente por ciência. Nunca concordei tanto com os críticos de um crítico de cinema, rsrsrsrs. Abraço!

  7. mas qual é o filme ficcional que não tem buracos e não tem coisas bem absurdas e completamente fora da realidade? Roteiro perfeito é difícil, tudo é macaquiado pra dar certo lá no fim, feito novela da globo. O cinema de entretenimento de ficção existe pra contar estórias que fujam bastante do comum, senão ninguém ia ver.

      1. Concordo com o Chico, ele exagerou e perdeu a mão, distorcer a realidade e as leis da física são fundamentais pra fazer um scifi, mas é necessário uma unidade temática e saber balancear os elementos sem exagerar nenhum deles, e Nolan não tem sabido fazer isso. A crítica deve se extender ao seu irmão, co-roteirista principal, pelo q li.

  8. Não vi ainda, mas ele usou o papo do amor?Mas isso é o Quinto Elemento.Já as tais realidades alternativas criadas por tais viagens são uma besteira de roteiristas sempre repetidas, nunca vi nada na física que justifique cria-las. Ou elas já existiam ou não.

  9. Mas quem disse que um filme de ficção científica tem que respeitar a ciência?
    Muito pelo contrário.A ciência deve ser provocada,desafiada.
    Um crítico disse: “Uma das reclamações a Interestelar diz respeito à dilatação do planeta em que eles pousam, onde uma hora é equivalente a sete anos. Para ter esta dilatação, você precisaria estar literalmente passando pela superfície de um buraco negro”.
    Não existe comprovação sobre os buracos negros.Um dos criadores dessa teoria,Stephen Hawking, surpreendeu o mundo ao afirmar que eles podem não existir.
    O escritor,o cineasta,têm licença poética pra revirar a ciência de ponta cabeça.

    1. Não sou contra licenças poéticas. Sou contra usar licenças poéticas e querer fazer um filme cientificamente rigoroso. Está no texto.

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