O questionamento mais imediato que pode ser feito sobre os dois volumes de Kill Bill é como eles podem ser tão díspares entre si. A saga de vingança de Uma Thurman segue um caminho no primeiro dos filmes gêmeos e se transforma radicalmente no longa que está em cartaz. E isso não é necessariamente bom. Kill Bill: Vol. 1 era um filme à parte dentro da obra de Quentin Tarantino. O diretor verborrágico havia, finalmente, conseguido transferir suas incontáveis referências do texto para o material filmado. A construção de seu filme priorizava a imagem ao diálogo – a fotografia nunca havia sido tão bela no cinematografia de Tarantino.
A história proposta pelo cineasta, um típico produto de sua mente fértil, foi contada com um inédito domínio técnico e artístico. Não que seus filmes anteriores seguissem fórmulas padronizadas. Pelo contrário, Tarantino é o maior responsável pela linguagem que redefiniu o cinema pop dos anos 90 para cá. Mas a fratura das linha espaço-temporal nunca o transformou num cineasta de excelência. O volume 1 de sua saga parecia ser o ponto mais alto do diretor nesse sentido. Tarantino estava muito mais à vontade com o suporte que escolheu para trabalhar. Parecia mais maduro no tratamento de imagem, na cristalização das referências, numa tranqüilidade maior ao se expressar. O texto, que continuava afiado, era apenas a base para a criação. E o filme é coeso, bem estruturado, belissimamente fotografado. Seria a vitória da estrutura no cinema de Tarantino, que finalmente (e corajosamente) abdicava do que o consagrou.
Esse volume 2, então, decepciona porque volta no tempo e ignora os avanços na mão do diretor. A questão não é que Kill Bill: Vol. 2 seja um filme ruim. Ele definitivamente não o é, mas é muito inferior à primeira parte. O cuidado com a imagem ainda existe, mas o filme volta a se apoiar em contar uma historinha, como se Tarantino tivesse reservado para a segunda fase de sua saga uma dezenas de explicações que gostaria de ter dado antes. Com seus flashbacks didáticos e seu texto mais interessado em fazer gracinhas, o filme prejudica bastante a interpretação de Uma Thurman (ótima, no volume 1), resumida a uma personagem atrapalhada e cheia de caras e bocas.
Se o filme anterior conseguia se manter no exato limite entre o pop inteligente e o exagero ridículo, sem nunca invadir o espaço aéreo do segundo, o novo longa parece querer mergulhar com prazer e sem medo no patético, sem muita chance de emergir. Isso é flagrante desde o começo nas tramas e textos dos personagens de Michael Madsen e Daryl Hannah, francamente desperdiçada depois da minúscula e deliciosa participação no volume 1. O duelo entre Uma e Daryl não chega aos pés das seqüências de lutas entre a protagonista e as personagens de Vivica A. Fox e Chiaki Kuriyama, que permanece como a melhor coadjuvante dos dois episódios.
A influência dos western-spaghetti fica mais evidente, mas nem essa suposta homenagem aos planos de maravilhoso Sergio Leone conseguem livrar este segundo volume do triste destino da comparação. As diferenças entre os tons dos dois filmes fazem questionar se Tarantino realmente tinha a intenção de lança-los como um só longa-metragem. Se a idéia era essa, dividir a história parece ter sido uma solução inteligente ou pelo menos eficaz. Caso Kill Bill fosse um só filme, talvez tivesse tido o impacto bem menor sobre a platéia. Porque este episódio complementar não chega aos pés do primeiro.
Kill Bill: Vol. 2 ½
[Kill Bill: Vol. 2, Quentin Tarantino, 2004]