O retrato do indivíduo homoafetivo na ficção é invariavelmente um retrato de dor, mas não de uma dor pontual, factual, relacionada a uma situção específica, como em geral são as dores humanas. Na ficção, a dor do homoafetivo é uma dor por sua condição e não pelo seu estado. O indivíduo homoafetivo na maioria absoluta das obras nunca está triste, ele é triste. O retrato, mesmo muitas vezes bem intencionado, bem confecionado, dramaticamente consistente, é o retrato de uma maldição, que a ficção entende como a “maldição de ser homossexual”.

A tristeza da personagem é a camuflagem mais à mão para que o autor pareça sério ao tratar deste assunto tão delicado, para que não se sofra a rejeição destinada unicamente ao personagem. Quando uma obra se atreve a tratar personagens homoafetivos com um olhar mais universal, menos carregado, ainda que não deixe de trazer seu drama à tona, que não negligencie a discussão, mas que o faça, oferecendo a estes personagens a possibilidade de não serem sufocados pela dor, pela tristeza, de não serem vítimas da “maldição”, de terem direito ao desejo livre (ou quase) de culpa, esta obra ocupa um espaço praticamente inédito numa historiografia homoafetiva, num imaginário de classe, numa geografia de sentimentos, esta obra permite, preenche, esta obra liberta.

Me Chame pelo Seu NomeÉ incrível que um filme tão delicado como Me Chame pelo Seu Nome tenha como ponto de partida um dos mais básicos estereótipos do tesão gay: o loiro, alto, de olhos azuis. A atração que Elio sente pelo aluno de seu pai, mais velho que ele, é a versão masculina para clássica história do príncipe encantado que todos os jovens homossexuais viveram na ficção ou fora dela. Partir disso para construir uma obra sólida, espontânea, com um fluxo narrativo que reflete a liberdade de seu texto e que é dramaticamente honesta em praticamente todas suas escolhas, sem recorrer à melancolia forçada onde muitos filmes de temática queer se escoram, é um bálsamo, mesmo que se esbarre no que se pode reconhecer como lugares comuns.

Tudo é solar em Me Chame pelo Seu Nome, mas Luca Guadagnino e James Ivory não fazem um retrato de época e, sim, compõem a partir do livro em que o filme se baseia um microverso particular onde o amor e a liberdade são possíveis em toda suas intensidade, ingenuidade e ludicidade. Existe uma plena consciência do sexo, mesmo que o diretor tenha se esquivado de mostrá-lo numa cena mais explícita. A consciência do sexo jogada neste ambiente à parte pensado para o filme talvez explique como uma obra que é toda construída em cima da languidez, em torno do tesão, não tenha cenas de sexo entre os protagonistas. Guadagnino, na verdade, parece ter matado dois coelhos: ao mesmo tempo em que ele entende esta história como uma história de amor romântico – “à moda antiga” – e prefere se dedicar ao desenho dos personagens, à construção de um roteiro simples, mas acertadíssimo, ao que ele considera uma discussão mais profunda, talvez, o diretor resolve possíveis problemas de censura e amplia o alcance de uma história que se pretende universal.

Apesar desta solução ingênua, quem assiste ao filme nunca duvida de seu pé no chão e de sua sensorialidade. Até porque a natureza simbiótica da relação entre Armie Hammer e a força da natureza Timothée Chalamet faz deles um dos casais mais bonitos que o cinema criou nos últimos anos. E a história que eles protagonizam é uma história de rebeldia em relação aos clichês, tanto do filme de dor quanto do filme de amor. Condenar uma obra assim por renegar a dor e supostamente não refletir a realidade, o que não é mesmo seu foco, é um tanto mesquinho; é determinar que lugar estes personagens precisam ocupar para serem aceitos; é reforçar que ao indivíduo homoafetivo cabe apenas o papel de protagonista da tragédia.

Discutimos Me Chame pelo Seu Nome nesta edição do Cinema na Varanda.

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Call Me By Your Name, Luca Guadagnino, 2017

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