CONFISSÕES DE UMA POLTRONA NA SALA DE ESTAR


Tabu (idem, Estados Unidos, 1931), de F. W. Murnau.

Começa completamente Robert Flaherty, co-autor do roteiro, com ares de documento (o que não é pouca coisa diante do nome citado), até se entregar ao maior diretor do filme mudo. A falta de atores profissionais dá ao longa de Murnau um misto de pureza e precariedade. A segunda some com rapidez quando o fotógrafo Floyd Crosby deixa a beleza da luz nas águas para encher a tela com closes dos protagonistas, nos remetendo a A Última Gargalhada ou quando usa sua técnica de dar a forma aos sonhos num engenhoso artifício de montagem, como era em Aurora. O encantamento reina absoluto desde a invasão de canoas no mar de Bora-Bora até a primeira (e veloz) aparição do guardião das pérolas. O amor proibido nunca ganhou realizadores tão delicados.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma (idem, Brasil, 1963), de José Mojica Marins.

Há que se elogiar muito este filme. Zé do Caixão, um dos personagens com maiores motivações filosóficas na filmografia brasileira, é uma bela criação. Um ser maléfico que ama as crianças e busca a pureza perdida. E o filme, ainda que parco em muita coisa (atuações precárias e técnicos iniciantes) tem uma fotografia bem acima da média. O problema maior talvez seja mesmo a compulsão onanista do astro-diretor, que cria seqüências enormes sem função apenas para garantir solos de interpretação, o que, convenhamos, ninguém merece. De resto, é um belo filme cujo final desacredita um pouco sua continuação, que às vezes é até melhor (como na cena colorida no inferno).

Barbarella (idem, Estados Unidos, 1968), de Roger Vadim.

Nada como rever um filme assim. Em 1968, fazer um longa inteiro sobre sexo não deveria ser lá grande coisa. Mas a embalagem ultrapop que Roger Vadim imprimiu a sua Barbarella é colírio e delírio. Jane Fonda nunca foi tão linda (e boa atriz). Sua performance deliciosamente ingênua e sacana ganhou um palco multicolorido e explosivo. E do striptease em carrossel da abertura até o vôo final do anjo sem expressão, esses cenários explodem junto com os multifigurinos da heroína futurista. Engraçado como o exagero da direção de arte esconde a inteligente fotografia, cheia de idéias mirabolantes – quase todas dando muito certo. A trilha sonora, que vai do sexy ao etéreo, é perfeita para momentos de celebração do infinito, viagens espaciais ou adoráveis desvios no sistema neurológico.

Nelson Freire (idem, Brasil, 2004), de João Moreira Salles.

João Moreira Salles está entre os melhores cineastas brasileiros em atividade. É impressionante como ele domina os filmes que dirige com tanta propriedade. O documentário que biografa o pianista baixinho perde para Entreatos apenas porque o retratado no segundo tem alcance maior. Salles picota todas suas intervenções na vida de Nelson Freire para, a seguir, promover o diálogo de uma com outra. Longe de ser refém de desfechos, o diretor prefere a desordem cronológica como base de sua criação. Salles cria na mesa de edição. Nas mãos de pessoas erradas, isso pode ficar gratuito ou mesmo ruim. Nas mãos dele, é bom cinema.

P.S.: entrar à noite no trabalho pode garantir experiências assustadoras como ver trechos do primeiro capítulo de América.

Comentários

comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *