Começou na sexta-feira, em Salvador, a Mostra Panafricana de Arte Contemporânea. Dentro dela, acontece a exibição de um ciclo de filmes africanos, coisa bem rara no dia-a-dia. Meu horário de trabalho vai resumir – e muito – minhas investidas neste festival, mas o fim-de-semana já garantiu três filmes. O primeiro nasceu deste lado do Atlântico mesmo: Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, estrelado por um elenco quase que totalmente negro. Os outros dois integraram a seleção do Festival de Ouegadougou, no Burkina Faso. Todos os três foram apresentados pelos diretores.

Filhas do Vento (idem, Brasil, 2004), de Joel Zito Araújo.

É, pelo menos, um trabalho corajoso. Assume sua condição de filme negro, sem ser um filme racial. O grande mérito mora justamente em como trabalha com naturalidade uma trama universal que poderia ser vivida por atores brancos, azuis ou cor-de-rosa. É um passo. O longa é bem cuidado, fotografia bonita, direção de arte eficiente, mas o que não consegue é se sustentar enquanto história. Tudo é muito sem substância, meio mal escrito mesmo, com cenas forçadas, artificiais, que deixam os atores em situações constrangedoras. Duro é agüentar Milton Gonçalves ser pai de Ruth de Souza e Léa Garcia, apesar de que é bom vê-las num filme. Filhas do Vento foi o protagonista do lamentável episódio envolvendo o presidente do júri do Festival de Gramado do ano passado, Rubens Ewald Filho, que atribuiu os muitos prêmios do longa à cor da pele de seus atores. Curioso é que essa associação é justamente o que Joel Zito gostaria de evitar com seu filme. A questão do preconceito aparece, mas não é a base, como na maioria absoluta dos desenhos de personagens negros. Não é panfleto. É tão negro que não tem cor.

Em Busca da Felicidade (En Attendant le Bonheur – Heremakono, Mauritânia, 2002), de Abderrahmane Sissako.

O diretor fez um discurso enorme, sobre engajamento social e político, antes da projeção. E Sissako é um diretor que tem realmente muito a dizer. Seu filme se revela muito lentamente. A princípio, não dá para entender seus motivos, mas, embalados pela trilha bonita e enquadrados pela fotografia riquíssima (apesar das limitações cromáticas do digital), os vários personagens vão se cristalizando aos poucos e mostrando suas motivações, como esperança e mudança. O melhor dos personagens é o do jovem estrangeiro que não faz o mínimo esforço para aprender a língua da cidade onde está morando porque quer mesmo é sair dali e ir tentar a vida na Europa. Estar ali não quer dizer nada. É apenas o meio do caminho. Outro personagem maravilhoso é pequenino eletricista Khatra, tratado com imenso carinho pela câmera de Sissako. Seu sonho de consumo é um macacão que o torne mais profissional, mais adulto, mais homem. É da solidão de seus personagens que surge a beleza deste filme.

Senhora Brouette (Madame Brouette, Senegal, 2002), de Moussa Sene Absa.

Surpreendente – talvez visão preconceituosa minha – a quantidade de boas interpretações neste filme. Da protagonista até sua adoravelmente furiosa filhinha, quase todos estão muito bem nesta mistura de comédia de costumes e crônica social do diretor senegalês, que também fez uma apresentação política de seu filme no festival. Absa costura uma trama que começa com um assassinato com um ensaio sobre o cotidiano no lado mais pobre de uma cidade da África urbana. O humor pontua o filme inteiro, mas não mais que a música. Um coral intervém o tempo inteiro na ação. Tanto que o longa aparece, muita vezes, um musical. Essa indefinição de gênero é muitíssimo bem-vinda. A saga da Madame Brouette é encantadora até mesmo quando quer fazer crítica.

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