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Crianças do Sol ★★★
Khorshid, Majid Majidi, 2020

As crianças sempre foram o objeto de estudo favorito do iraniano Majid Majidi. O cineasta criou toda uma carreira em torno delas, transformando as histórias que conta em pequenas parábolas que refletem a política e a sociedade do país. Mas, como seus filmes têm presença garantida em festivais e circulam em cinemas de arte ao redor do mundo, Majidi parece se contentar com uma postura de menor confronto com às autoridades (ao contrário de alguns dos cineastas mais importantes de seu país). “Crianças do Sol” não foge à tradição do cinema do diretor: se existe uma escola que tenta resistir ao sistema capitalista que a cerca, há também um mesmo modelo de filme agridoce que o diretor faz há anos, apresentando, entre o drama e a comédia, crianças “adoráveis” que resistem às dificuldades que as perseguem. Aqui, o protagonista, o expressivo Roohollah Zamani, lidera uma trupe de meninos que comete pequenos golpes para ajudar a sustentar suas famílias até que recebe a missão de encontrar um tesouro. Não deixa de ser interessante como esta fórmula pode ser lida como uma metáfora do próprio cinema do diretor, que através de uma narrativa simples revela um comentário social discreto, mas que mira na empatia do espectador. Da mesma maneira como quem assiste a um filme do cineasta, os personagens deste novo trabalho se vêem encantados pela ideia de um conto de fadas (que vai resgatá-los daquela realidade difícil), mas, assim como os espectadores, eles vão se confrontando com uma realidade que chega a conta-gotas, no contexto e nos pequenos detalhes, numa anotação política disfarçada de fábula para comover quem vê e não desagradar quem olha.

Dente por Dente ★★
idem, Julio Taubkin e Pedro Arantes, 2020

É muito interessante perceber que alguns realizadores contemporâneos tentam recuperar um certo cinema de gênero no Brasil. Se, por um lado, não temos uma grande tradição em thrillers, há bons exemplos em nossa filmografia que abraçaram esse caminho, mas perseguiram uma certa identidade brasileira. “Dente por Dente” impressiona pela produção. É um filme com bastante cuidado com os aspectos técnicos (fotografia, direção de arte, som), mas foge um pouco desse movimento em direção a criar obras que traduzam melhor, ou mais de perto, alguma conexão com questões mais particulares. O filme de Júlio Taubkin e Pedro Arantes é assumidamente inspirado em longas policiais coreanos, mas ao mesmo tempo guarda nítidas influências de um cinema de gênero norte-americano bem tradicional. A ideia de construir a trama em torno da simbologia dos dentes é curiosa, mas não consegue encontrar no roteiro, que recorre a estereótipos e frases de efeito, uma maneira de desenvolver com alguma originalidade este ponto de partida. A presença de bons atores do elenco ajuda a dar credibilidade para o projeto, mas se o filme revela diretores interessados em fazer um cinema profissional e popular, ainda falta encontrar o discurso que garanta pulso para os próximos trabalhos.

Malmkrog ★★★½
idem, Cristi Puiu, 2020

A nova empreitada de Cristi Puiu faz um curioso paralelo com “Dias”, trabalho mais recente de Tsai Ming-liang. Enquanto o filme do malaio praticamente não tem diálogos, as palavras, muitas delas, são a base do trabalho do romeno. Os dois longas são opostos complementares, mas se o cinema de observação, minimalista, de Tsai encontra alguns bons pares recentes, “Malmkrog” é um filme que não se faz mais hoje em dia. Puiu faz um filme de discussão, de argumentação, que coloca o texto em primeiro plano, mas não abandona o apuro com as imagens, a linguagem cinematográfica. Em alguns momentos, lembra Marguerite Duras ou Jacques Rivette, com seus enquadramentos rígidos e movimentos de câmera muito discretos, sem esquecer do que foge à ação principal, mas compõe o fundo das cenas, trazendo elementos importantes não apenas para essa composição dos planos, mas para estabelecer contextos e atmosferas. atmosfera. Puiu partiu de um livro do filósofo russo Vladimir Soloviov e, durante 3h20, promove uma sucessão de debates acirrados entre cinco membros da aristocracia russa que passam férias numa mansão na Transilvânia. Ao longo de todo esse tempo, se debate vida, morte, religião, guerra e etnias em diálogos complexos que precisam de uma certa dedicação do espectador para ter sua força completamente compreendida.

O texto erudito é defendido por bons atores, que falam em francês, língua oficial da classe alta, e revelam vários aspectos do pensamento aristocrático da época, entre o fim do século XIX e começo do XX. Num dos momentos mais instigantes os cinco personagens devaneiam sobre o “europeu“, como se se colocassem numa posição de observadores que frequentam aquele meio, mas flutuam sobre sua essência mundana. O sexto protagonista do longa, dividido em capítulos batizados com os nomes de cada um dos personagens, é o único que não faz parte desta nobreza intelectual aqui retratada. István é o chefe dos empregados da casa, um homem que reproduz o tratamento hierárquico que se acostumou a seguir, mas que estrela um dos momentos mais surpreendentes e angustiantes do filme. O diretor parece nem um pouco interessado em fazer concessões: realizar um filme tão erudito e com uma duração tão prolongada, num projeto estético tão completamente fechado, mostra que Puiu quer oferecer uma obra completamente particular, uma reflexão filosófica sobre a organização da sociedade e sobre os princípios civilizatórios, mostrando de onde vêm muitos dos fundamentos do nosso pensamento intelectual presentes até hoje.

Meu Coração Só Irá Bater se Você Pedir ★★
My Heart Can’t Beat Unless You Tell It To, Jonathan Cuartas, 2020

Muitas vezes o cinema independente americano parece tão preso às mesmas ideias de narrativa, atmosfera e de temática que parece que qualquer movimento na direção contrária ao que já existe simplesmente nem é considerado. O primeiro longa de Jonathan Cuartas notadamente tentar se afastar das regras do filme de gênero para desenvolver uma identidade própria e autoral para “Meu Coração Só Vai Parar de Bater Se Você Pedir”, mas, ao mesmo tempo em que toma esse caminho, o filme se torna cada vez mais dependente do modelo de filme ind para festivais de cinema: uma certa assepsia visual — mesmo quando a cena pede sujeira —, uma narrativa deliberadamente fria, metáfora já cansada para refletir o comportamento mecânico dos personagens e atuações pretensamente minimalistas para abarcar toda essa embalagem. É um projeto de cinema já tão desgastado que o impacto se dilui à primeira comparação. Cuartas parece acreditar que está apresentando uma nova perspectiva sobre o vampirismo, mas parece nunca ter visto filmes que tratam a condição como uma patologia (poderia começar por “O Vício”, de Abel Ferrara). Essa perseguição por originalidade dá ao filme um tom cerimonioso e cerebral que apaga a potencialidade de lidar com aspectos menos materiais. Nota-se uma dedicação, mas só a presença de Patrick Fugit oferece algo mais estimulante nesta experiência de cinema hipster.

Os Nomes das Flores ★★★
Los Nombres de las Flores, Bahman Tavoosi, 2019

Os enquadramentos planejados em detalhes pelo diretor Bahman Tavoosi criam um curioso contraste com a simplicidade da história. São imagens bonitas, escolhidas com cuidado, mas que retratam o cotidiano áspero da protagonista, uma professora que vive nas montanhas bolivianas e que construiu sua vida em torno de uma memória. “Os Nomes das Flores” é uma reflexão delicada sobre a maneira como nos relacionamos com nossos mitos — e como os usamos como motores para as nossas vidas. O que realmente importa na história da mulher que teria servido um prato de sopa para Che Guevara (e recebido em troca um poema sobre flores) não é a versão correta dos fatos, mas o que se fez com eles. Tavoosi, iraniano expatriado, escolheu o interior da Bolívia como cenário e tema de seu primeiro longa-metragem. Quando os outros personagens questionam a história da professora e se instala um clima de acusação no vilarejo, o cineasta não se interessa em decifrar o que há de real ou não, mas nos confronta com uma reflexão: o que é mais essencial? Os fatos que constroem nossas histórias ou as histórias que construímos a partir dos fatos?

Sobradinho ★★½
idem, Cláudio Marques e Marília Hughes, 2020

É em torno da história de Dona Pequenita que se desenvolve a narrativa deste documentário. Ela é uma das milhares de pessoas que tiveram que abandonar suas casas nos anos 1970, no norte da Bahia, para que fosse construída a barragem de Sobradinho, que resultou num dos maiores lagos artificiais do mundo e possibilitou a criação de uma usina hidrelétrica. O filme de Cláudio Marques e Marília Hughes procura recontar a trajetória desta mulher para resgatar a memória do desterro de um povo que perdeu suas raízes para “o progresso”. É um bom ponto de partida e, para ajudar a confeccionar essa viagem no tempo, os diretores estão unidos de grande quantidade de imagens de arquivo cujo principal papel e mostrar a maneira como o despejo dos moradores da região foi tratado à época. O senão de “Sobradinho” é que, se a personagem oferece um vasto material humano, ela termina perdendo espaço para as três ex-funcionárias do projeto de construção da barragem, que são convocadas para refletir sobre o que aconteceu e repassar aquela história. É aí que o filme perde um pouco do apelo emocional que poderia ter. Existe uma cena em especial que caminha para outra direção, explorando não apenas o que se deixou pra trás, mas quem se deixou pra trás, o que conecta — ainda que brevemente — o filme com o longa de Lesoto “Isso Não É um Enterro, é uma Ressurreição”.

Vivos ★★½
idem, Ai Weiwei, 2020

Ai Weiwei ocupa um papel importante no mundo hoje em dia: o chinês se transformou num dos ativistas sociais mais conhecidos do planeta ao utilizar a arte como uma maneira de militar pelas mais diversas causas. O que, no entanto, parece competir com ou diluir sua “missão“ é a quantidade de causas com que ele se envolve. Do drama dos refugiados à pandemia do coronavírus, o artista se envolveu com as mais variadas discussões. Este novo filme abre mais uma vertente em seu currículo de militância: em “Vivos”, ele investiga o desaparecimento de 43 estudantes de uma escola mexicana numa região controlada pelo tráfico de drogas e pela corrupção policial. Como documentário, não deixa de ser um exercício competente, com Ai Weiwei entrevistando as famílias que convivem com ausência de seus filhos há seis anos. Existem alguns momentos em que o cineasta consegue capturar o que o vazio e a falta de respostas representam na vida dos personagens, mas a estrutura tradicional do filme não permite que essa investigação vá muito além disso e, talvez por uma certa reverência e respeito pelo assunto, o luto daquelas pessoas não encontra uma tradução de linguagem, o que é frustrante diante da capacidade criativa do diretor.

(+)

Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.

Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.

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