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Os Caçadores de Coelhos ★★½
The Rabbit Hunters, Guy Maddin, Evan Johnson e Galen Johnson, 2020

Há 15 anos, Guy Maddin dirigiu um curta-metragem sobre o centenário de um cineasta. No caso, o homenageado era Roberto Rossellini, pioneiro do neorrealismo. Sua parceira nessa empreitada foi a filha dele, Isabella, que o interpretava em “Meu Pai Faz 100 Anos”. Agora, o canadense se reúne com a atriz para comemorar um século de outro diretor. “Os Caçadores de Coelhos” une onírico, estético e memória, características tanto do cinema de Maddin quanto do retratado da vez, Federico Fellini, que ganha vida na pele de Isabella Rossellini. É um ensaio poético em que o cineasta, mais uma vez acompanhado de Galen e Evan Johnson (com quem divide seus últimos projetos) exercita suas obsessões de sempre: manipulações de imagens, texturas, montagem e som. O resultado, embora plasticamente bonito, não tem a força de outros filmes do diretor e parece muito distante do próprio Fellini. Se em “O Adivinhador”, também exibido nesta edição da Mostra, o formato curto parecia ser um espaço adequado para as experimentações do diretor, este filme prova que  esta não é uma verdade absoluta.

Um Dia Com Jerusa ★★½
idem, Viviane Ferreira, 2020

Cada vez mais mulheres negras conseguem estrear como diretoras de longas-metragens no Brasil. Um espaço renegado durante muito tempo e que começa a ser ocupado. Viviane Ferreira se junta a este time com “Um Dia com Jerusa“, versão longa de seu curta de alguns anos atrás. A cineasta, que também assina o roteiro, aborda vários aspectos da herança cultural afro-brasileira, desde comportamentos sociais até religiosidade, discute o choque de gerações dentro deste contexto e tenta incorporar como elementos cinematográficos algumas destas abordagens. Existe uma atmosfera aberta para que real e espiritual convivam com harmonia. É um filme cheio de boas ideias, de tentativas de reflexão e discussão importantes, mas que nem sempre consegue materializar isso na prática. O roteiro tem algumas fragilidades que desdramatizam a situações. É interessante perceber que a cineasta procura criar uma linguagem, utilizando inserts de mulheres negras em still, mas falta um pulso maior para administrar as encenações. O discurso é claro e consistente, mas estes pequenos senões tira um pouco do equilíbrio do resultado. As intenções estão todas ali, mas nem sempre ganham o acabamento que precisam.

Em Meus Sonhos ★½
Bir Düs Gördüm, Murat Çeri, 2020

A sequência inicial e até promissora. Parece que o filme vai caminhar para o retrato delicado da rotina de uma família no interior da Turquia, destacando atividades banais com uma fotografia que, embora busque beleza o tempo todo, tenta mostrar esse cotidiano por outros ângulos. Ledo engano. “Em Meus Sonhos” não tem nada de sutileza. É um melodrama afetado que tenta criar comoção a cada 5 minutos, principalmente por seu retrato pasteurizado de uma vila, de seus moradores e seus dramas. Murat Çeri reserva um generoso espaço para um Tonho da Lua local e dirige todas as cenas em que ele aparece ressaltando sua pureza absoluta, sem nunca conseguir dar qualquer profundidade ao personagem. Esse olhar supostamente poético também é destinado ao pequeno protagonista, o menino que perdeu os pais no acidente de carro e que é criado pelos avós. Embora as cenas que ele divide com as outras crianças do lugar sejam um pouco melhores do que o conjunto, o diretor se apoia demais nesta busca pela ingenuidade como se tivesse chegado à essência daquele lugar e daquelas pessoas. É o típico produto que passeia por “circuitos de arte” ao redor do mundo com seu retrato envernizado de uma realidade pretensamente lírica.

Exílio ★★★
Exil, Visar Morina, 2020

Visar Morina nasceu no Kossovo, mas mora na Alemanha — e é desta experiência que ele tira as ideias tanto para a temática quanto para a atmosfera cinematográfica que constrói em “Exílio”. O ótimo Misel Maticevic, alemão de ascendência croata, vive um imigrante do país de origem do diretor que construiu sua vida em terras germânicas: casou, formou família, tem um emprego aparentemente estável, encontrou até uma amante. O problema é que o protagonista, até então confortável em sua vida cotidiana, começa a se sentir rejeitado por quem o cerca. Mais do que isso, o ambiente em torno dele ganha ares cada vez mais hostis e violentos que mexem com a própria sanidade do personagem. Morina inicia assim uma jornada em níveis prático e psicológicos, que reflete tanto sobre a perseguição provocada pela xenofobia como sobre a fantasmagoria do exílio, palavra que não por acaso batiza seu filme. Para o diretor, a condição de imigrante sempre será um peso para quem teve que buscar outro país, outra cultura, outra identidade por questões de sobrevivência. É um análise cruel sobre o não-pertencimento, que atravessa o campo íntimo e o campo externo como se essa “condição” fosse uma prisão e nunca um pouso para a liberdade. O cineasta inicia seu filme com o retrato frio e detalhado do dia-a-dia do protagonista, herança do cinema contemporâneo alemão que ele aplica à realidade que quer estabelecer. As presenças de Sandra Hüller e Rainer Bock, atores renomados, ajudam a criar esse ambiente. O caminho seguinte é bem interessante: Morina converte seu filme num thriller psicológico, onde o preconceito real se confunde ou acentua o trauma do “estrangeiro”. Embora namore com o cinema denuncista e fatalista que surgiu aos cachos nas últimas décadas em várias partes do mundo, a rigidez do planos e tom sério conseguem manter válida a pertinência da discussão que o diretor provoca.

Gênero, Pan ★★★
Genus, Pan, Lav Diaz, 2020

Como estudo social de um país corrompido, à herança de um governo ditatorial, que reflete na corrupção das pessoas, “Gênero, Pan“ é um tanto decepcionante. Lav Diaz já mergulhou muito mais profundamente na história e na política das Filipinas em vários de seus filmes. Aqui, até o ponto de vista parece um pouco cansado, e nunca desenvolvido com todas as camadas que já vimos em trabalhos anteriores (talvez o diretor precise mesmo das longas horas de seus filmes mais celebrados para chegar à reflexão que almeja — este aqui tem “apenas” 2h37, uma raridade em sua carreira). A jornada dos personagens pela floresta, onde supostamente sua conexão com a natureza deveria trazer à tona comportamentos mais instintivos e selvagens, é tímida se pensarmos nas viagens “metafísicas“ de “Do Que Vem Antes“ e “Canção para um Doloroso Mistério”. Este movimento a caminho do primitivo está presente, mas merecia ser mais desenvolvido. Diaz ainda é um grande esteta, mesmo que o rigor de suas imagens aqui não seja tão vigoroso quanto já vimos. Este novo trabalho, pelo qual foi premiado como melhor diretor numa seção paralela do Festival de Veneza, recicla seus velhos temas e a construção detalhada e imersiva que empresta a suas narrativas. É sempre um cinema de resistência, político e de análise social, mas o fluxo de trabalho do diretor, que produz tantos e tão longos filmes todos os anos, precisa de uma renovação para fugir de seu próprio lugar comum.

Pai ★★
Otac, Srdan Golubovic, 2020

A última sequência de “Pai“ é bastante simbólica: a reconstrução lenta e literal de um lar. É um desfecho um pouco óbvio, mas muito bem filmado e bastante coerente com a trajetória do protagonista. A questão é que essa resolução é provocada pelo apêndice de uma série de tragédias pessoais que o sérvio Srdan Golubovic impõe ao personagem. É o golpe final, que deixa claro como o diretor se relaciona com o mundo e como quer representá-lo. Sob o pretexto de uma defesa humanista daquele homem, o filme elenca uma quantidade tão grande de injustiças e reveses que a comoção pretendida vai, aos poucos, diluindo. A jornada do protagonista para recuperar seus filhos, apesar de nos apresentar as diferentes paisagens do interior da Sérvia, o que poderia ser uma reflexão sobre as ruínas de um país que passou por tantas guerras, parece muito mais um pedido de comiseração do que uma denúncia em si. A cena dos lobos (bobos) não tem um décimo do efeito planejado. A portuguesa Ana Rocha de Sousa, também este ano, tratou da mesma questão com um neorrealismo dardenniano que transformou “Listen” num filme bem mais potente. E aquele é um primeiro filme. O projeto de “Pai” compromete até seus pontos fortes. Goran Bogdan dá várias pistas de que é um bom ator, mas, como é dirigido para entregar uma expressão única, nem isso se sustenta muito bem. As intenções estão todas ali, mas, na maioria das vezes, longe do lugar, do tom e do volume certos.

Stardust ★½
idem, Gabriel Range, 2020

O maior problema do filme não é nem sua natureza apócrifa nem o fato de não ter uma música sequer de David Bowie — este último é um problema real, mas parece até pequeno perto do conjunto. O pecado mais grave de “Stardust” é fazer o retrato idiotizado de uma figura do porte da de seu personagem como se o longa fosse um coming of age tardio de um homem imaturo e assombrado por um grande trauma. São uma hora de meia de um lenga-lenga em looping que o diretor Gabriel Range conduz da maneira mais caricata e convencional possível sempre insinuando uma virada que, quando vem, dura segundos. Por falar em insinuação, a trilha sonora parece sempre mimetizar os acordes iniciais de várias composições de Bowie, o que só aumenta a frustração. Há cenas claramente inspiradas em “Bohemian Rhapsody” (como se isso fosse uma grande referência). Johnny Flynn é, possivelmente, o único destaque. O bom ator de “Emma.” está escondido ali, mas muito bem escondido embaixo de perucas malamanhadas. A grande questão é: se a vontade de fazer um filme não autorizado era tão grande, o resultado precisava ser tão comportadinho?

(+)

Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.

Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.

Informações básicas: a 44ª Mostra de Cinema de São Paulo acontece online a partir de 22 de outubro e vai até dia 4 de novembro. As informações detalhas sobre o evento e sobre cada produção exibida estão no site da Mostra. A maior parte dos filmes será exibida na plataforma Mostra Play, criada para o evento. Cada filme vai custar R$ 6 e pode ser comprado na própria plataforma com os cartões de crédito Visa e Mastercard. A compra é de um filme por vez e será liberada à meia-noite e um do dia 21 para o dia 22. Quase todos os filmes já poderão ser adquiridos no primeiro dia. Alguns só entram na segunda semana. A partir da data da compra, você tem 3 dias pra dar o play e, a partir do momento em que começa a ver o filme, tem 24 horas para terminar de assisti-lo. O longa “Casa de Antiguidades” vai ser exibido exclusivamente no Belas a la Carte. A compra deste filme será nesta plataforma pelo mesmo valor. Não é preciso ser assinante. Quinze filmes podem ser vistos gratuitamente na plataforma Sesc Digital e outros quinze serão disponibilizados também de graça no SP Cine Play.

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