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O Despertar de Fanny Lye ★★★★
Fanny Lye Deliver’d, Thomas Clay, 2019
Uma fábula filosófica sobre valores libertários ou um exercício não convencional de cinema de gênero. Ou ainda a releitura crítica de um período e um ambiente históricos em forma de ficção. “O Despertar de Fanny Lye” é um filme que segue mais caminhos do que as definições tradicionais conseguem classificar e que, inesperadamente, é capaz de converter todas estas narrativas num mesmo modelo e num mesmo discurso.
Thomas Clay, que, além de dirigir, escreveu, produziu e compôs a trilha sonora caótica do filme, apresenta a desconstrução de uma personagem na Inglaterra dos anos de 1600, num período de fortíssima influência religiosa, a partir da chegada de dois forasteiros à pequena fazenda onde ela mora com o marido bruto e o filho que venera o pai. Para o diretor, aqueles estranhos representam a chegada do conhecimento para a Fanny Lye, muito bem defendida por Maxine Peake.
É incrível como Clay sobrepõe o didatismo de algumas cenas e diálogos para registrar esse momento de transformação de maneira muito espontânea, como se fosse uma consequência inevitável do acesso ao pensamento filosófico. Tudo funciona de um modo muito estranho num filme que poderia facilmente ser engolido por seu volume caótico de intenções e mecanismos, inclusive a música que parece estar um tom acima do que acontece nas cenas. Mas “Fanny Lye” atravessa esses pontos de atrito, com um discurso veemente contra o fanatismo, o autoritarismo e o machismo que dominavam o país há 400 anos. Embora fale sobre o um período tão específico, este filme nunca foi tão atual.
Farewell Amor ★★★
idem, Ekwa Misangi, 2020
A imigração é um tema bastante recorrente entre os filmes da Mostra de Cinema de São Paulo de 2020. “Farewell Amor” vai de encontro aos outros filmes que tratam do assunto, ao construir uma observação detalhada, mas cheia de carinho sobre as questões de seus personagens. Os protagonistas são uma família angolana em adaptação dos Estados Unidos. O pai já mora no país há 17 anos e, finalmente, conseguiu trazer a companheira e a filha para junto dele. O hiato entre a última vez que se viram e o presente provocou uma série de situações que criam um abismo no meio desta família. A diretora Ekwa Misangi, em seu primeiro longa-metragem, reflete sobre como manter a identificação com alguém que se ama quando a falta de convivência foi maior do que o período em que se esteve junto. Mistura reflexões sobre a situação dos estrangeiros, adaptação, identidade cultural e formação ético-religiosa e as tradições caras a cada uma daquelas pessoas. Com extrema sensibilidade, a cineasta, que estrutura seu filme em capítulos protagonizado os por cada um dos membros da família, constrói detalhadamente todos os personagens, aplicando nuances procurando entender perspectivas as questões individuais. É um esforço bonito, que foge do padrão dos filmes sobre o tema, focando mais nas relações interpessoais e nos laços que conectam aqueles personagens, mas sem deixar de lado a discussão política. Embora o desfecho pareça algo conciliador, o caminho perseguido até ali foi suficiente para validar os debates.
A Morte do Cinema e do Meu Pai Também ★★★
The Death of Cinema and My Father Too, Dani Rosenberg, 2020
Fazer cinema como uma maneira de eternizar. O filme de Dani Rosenberg utiliza o mesmo caminho de muito dos filmes contemporâneos de explorar os limites entre a ficção e o documentário. Mas este processo, um tanto esquemático hoje em dia, ganha aqui um objetivo Íntimo que ressignifica sua estrutura, lidar com o luto surgido a partir da iminência da perda de um ente querido. O diretor encena a história de um cineasta que quer colocar seu pai, figura fascinante, controladora e espaçosa, no centro de um novo projeto num movimento que, guardadas as devidas proporções, encontra pontos de espelho no brasileiro “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”. A partir da representação, Rosenberg documenta esse processo de investigação de sua relação com o pai ao mesmo tempo em que registra o mecanismo de construção de um filme. Ele expõe a imagem que faz de sua família como forma de expurgo e de comentário afetuoso sobre o pai e sobre o cinema. O protagonismo deste aspecto, no entanto, chega num ponto que esgota a estrutura e o artifício perde o frescor e mesmo a cativante performance de Marek Rosenbaum como o pai rabugento começa a cansar.
Nadando Até o Mar se Tornar Azul ★★★
Yi zhi you dao hai shui bian lan, Jia Zhang-ke, 2020
Dono de uma sensibilidade fora do comum para fazer referências à situação política da China sem parecer afrontar as autoridades do país, Jia Zhang-ke fez algumas obras-primas na ficção, onde suas construções complexas ganham uma tradução simples, mas cheias de camadas. Foi assim com “Em Busca da Vida”, “Plataforma” e “O Mundo”. Seus últimos longas ficcionais, no entanto, parecem mais ligados a questões práticas, O que os aproxima de seu trabalho como documentarista. Zhang-ke lidou com muitos registros diretos em seus documentários e “Nadando Até o Mar Ficar Azul” é — e não é — uma destas obras. O filme acontece a partir de um evento, um encontro que reuniu intelectuais na província natal do cineasta e que ele registra, ao mesmo tempo em que acompanha diversos aspectos do cotidiano das pessoas que moram naquele lugar. De um lado a prática; de outro, as ideias. O diretor tenta conectar esses dois aspectos e tecer um comentário sobre as últimas décadas da história chinesa. Sempre a partir da perspectiva de seu povo, mas ampliando a reflexão para englobar o pensamento de escritores que entrevista ou cita. É um documentário formal, como boa parte dos trabalhos de não ficção que Zhang-ke cria, mas mais focado em depoimentos do que seus filmes de observação. Nem sempre essa mistura mantém o interesse, mas o esforço do diretor para refletir sobre história política e cultural do seu país merece uma atenção especial.
Uma Noite na Ópera ★★★½
Une Nuit à l’Opéra, Sergey Loznitsa, 2020
“Celles qui Chantent” (em francês, “Aquelas que Cantam”) É o título de um longa-metragem que reúne quatro curtas dirigidos por diferentes cineastas. Cada um conta uma história ligada a cantoras. Dois deles estão sendo exibidos nesta edição da Mostra de Cinema de São Paulo: “Escondida“, de Jafar Panahi, já comentado aqui, em que o diretor procura uma menina com a voz “proibida”, e este “Uma Noite na Ópera”, em que o ucraniano Sergey Loznitsa reúne diversas imagens de arquivo para reconstruir os bastidores de uma noite em que Maria Callas se apresentou para monarcas, autoridades e estrelas de cinema na Ópera de Paris. Atenção especial para a palavra “reconstruir” porque ela define o que o cineasta faz aqui. As imagens coletadas por Loznitsa foram registradas ao longo das décadas de 50 e 60. Muitas delas não foram captadas no dia em que Calles fez sua apresentação. O filme é a re-construção de uma memória, um exercício de montagem, que reforça o poder do cinema de criar qualquer discurso a partir de sua característica mais essencial. O resultado é um filme que pode ser não ser historicamente exato, mas cujo grande poder de representação atropela a necessidade de ser preciso.
Sem Ressentimentos ★★
No Hard Feelings, Ismaël El Iraki, 2020
O fato do filme ser baseado na história real de seu próprio diretor não desculpa o descaso com os personagens, estereótipos da cena LGBT, mergulhados em situações tão caricatas quanto eles. Embora Faraz Shariat demonstre em vários momentos que tem um discurso a entregar, na maioria das vezes ele fica tão perdido entre as tentativas de representação “espontânea” de aspectos da vida gay que as ideias vão sempre para segundo plano. Alguns momentos são mais genuínos ou conseguem algum tipo de de comunicação, seja pela ousadia nas cenas de sexo ou pela delicadeza do desfecho, mas são instantes pontuais em que Shariat tenta construir algo além. O filme ganhou o Teddy, prêmio para produções de temática LGBT no Festival de Berlim, mas a inexperiência do diretor, bastante imaturo na condução da narrativa, impede que as questões vão além da apresentação. Existe uma trama ligada à imigração, à religião e à cultura iranianas, e ao próprio coming of age dos personagens, mas “Sem Ressentimentos“ é incapaz de desenvolver qualquer um desses aspectos.
Zanka Contact ★★
Zanka Contact, Ismaël El Iraki, 2020
Khansa Batma ganhou o prêmio de melhor atriz na seção Panorama do Festival de Veneza deste ano. Ela interpreta uma despachada trabalhadora das ruas que cruza a vida de um rock star quando seus carros se envolvem um acidente de trânsito. A partir daí, começa uma história de um amor proibido que, em forma de comédia maluca, atravessa o submundo de Casablanca encontrando todo o tipo de criminosos e marginais. A música tem presença forte no filme, o que faz sentido já que o diretor, em seu primeiro longa-metragem, tem uma gravadora na França e trabalha com a produção de bandas. A embalagem é sempre simpática, mas os personagens ficam na caricatura, nunca são totalmente desenvolvidos, e a vontade de fazer um sub- Tarantino no Marrocos também não encontra um caminho muito original. A impressão que o filme depende tanto de suas referências, principalmente do cinema norte-americano, que nunca chega encontrar uma identidade própria.
(+)
Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.
Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.
Informações básicas: a 44ª Mostra de Cinema de São Paulo acontece online a partir de 22 de outubro e vai até dia 4 de novembro. As informações detalhas sobre o evento e sobre cada produção exibida estão no site da Mostra. A maior parte dos filmes será exibida na plataforma Mostra Play, criada para o evento. Cada filme vai custar R$ 6 e pode ser comprado na própria plataforma com os cartões de crédito Visa e Mastercard. A compra é de um filme por vez e será liberada à meia-noite e um do dia 21 para o dia 22. Quase todos os filmes já poderão ser adquiridos no primeiro dia. Alguns só entram na segunda semana. A partir da data da compra, você tem 3 dias pra dar o play e, a partir do momento em que começa a ver o filme, tem 24 horas para terminar de assisti-lo. O longa “Casa de Antiguidades” vai ser exibido exclusivamente no Belas a la Carte. A compra deste filme será nesta plataforma pelo mesmo valor. Não é preciso ser assinante. Quinze filmes podem ser vistos gratuitamente na plataforma Sesc Digital e outros quinze serão disponibilizados também de graça no SP Cine Play.