Noé

Há dois aspectos interessantes em Noé que retiram o filme da carapaça do épico bíblico, embora não sejam suficientes para deixar a obra de Darren Aronofsky livres de suas obrigações religiosas e – por que não? – filosóficas. O primeiro é o completo despudor do cineasta em assumir os elementos mitológicos do material, dando vida e papeis importantes a seres fantásticos, o que tanto pode indicar que o diretor entende que a ficção está na base de toda e qualquer religião, inclusive as mais seguidas, como pode uma maneira de se salvaguardar contra ataques de quem quiser enxergar o filme como um veículo para o Cristianismo, o que está em desuso nos dias de hoje, principalmente entre os modernos.

O segundo aspecto é o tratamento que Aronofsky dá ao próprio personagem principal, que no decorrer do filme se rende a um fanatismo religioso absoluto, em que se enxerga como único portador da palavra do Criador, como o filme se refere a Deus, entre os homens. Em Noé, a palavra de Noé é lei. Essa opção, embora renda um punhado de tramas paralelas que se perdem no meio da missão oficial da família na porção final do longa, serve para humanizar o personagem, já que a interpretação de trator de Russell Crowe não cumpre muito este papel. Por outro lado, relativizar as certezas do capitão da arca do dilúvio – ou seja, trazer Noé pro “mundo real”- contrasta com a fantasia explorada sem dó no começo do filme.

Diante destas preocupações, que moldam num novo modelo de épico bíblico, mais condizente com nosso descrente mundo atual, Noé está mais para uma versão mais “filosófica” de Cruzada, de Ridley Scott, do que para o purismo de Os Dez Mandamentos, de Cecil B. De Mille. Aronofsky parece temer afastar o espectador que não se interessa por temas religiosos, então adota uma câmera mais ágil, veste os atores com roupas que parecem trapos de 30 anos atrás e oferece ao personagem-título sem muita maquiagem, sem a aparência de um senhor que nosso imaginário coletivo cristalizou. O interessante é que o filme funciona bem melhor quando o diretor tenta fazer dele uma aventura mitológica, quase um guilty pleasure dos tempos arcaicos.

Quase porque nem muito divertido Noé consegue ser. Não tem muito sentido fazer o filme em 3D quando os efeitos especiais não são de Deus – e são relativamente poucos diante das mais de duas horas de mensagens divinas. A sequência do dilúvio é a que mais justificaria os óculos pesados não fosse tão decepcionante. Falta ação da mesma forma que falta estofo. Sabe como é, né? Épicos bíblicos, mesmo que carreguem elementos mágicos, seres mitológicos e dramas familiares têm contas a pagar com a religião. Haja pseudofilosofia das antigas sob a égide de pensamento puro misturada com momentos Cosmos e National Geographic. A picaretagem só vale para ver um Noé fanático religioso. De bom coração, claro, como todos os outros.

Noé EstrelinhaEstrelinha
[Noah, Darren Aronofsky,2014]

Comentários

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Um pensamento sobre “Noé”

  1. Nos anos pós 2 guerra mundial, o mundo estava em reconstrução.Europa ou países cristãos que sofreram com a guerra, trabalhos eram desenvolvidos para recuperar a auto estima, a confiança e os valores morais e cristãos. O cinema não foi diferente.
    Nos filmes bíblicos no final dos anos 40 e até o começo dos anos 60, a parte divina e religiosa ganhou destaque acentuado.
    Praticamente qualquer personagem bíblico possuía um caráter ou comportamento quase que divino.Era o ser humano em um patamar sobrenatural, o que convenhamos, fugia da realidade, mas que funcionou muito bem como um dispositivo, por décadas. A forma de como esses valores são vistos e praticados hoje, ficou mais “leve” e se adaptou aos novos tempos, a própria igreja nos dá indícios dessa mudança.A sociedade mudou em todas as esferas do conhecimento, e do desenvolvimento humano.Compare o biotipo dos heróis dos épicos dos anos 50 com os de hoje; em que conseguem contrariar até a lei da física. O cinema também mudou em relação aos filmes épicos, bíblicos ou cristãos.
    Filmes e séries atuais que envolvam temas bíblicos e cristãos, colocam seus personagens em um grau mais terreno do que divino.
    Nos filmes dos anos 50, eram os homens se elevando á Deus.
    Nos filmes atuais, é Deus se aproximando-se mais dos homens e portanto mais terreno.O que vejo hoje, é que mesmo nos filmes épicos e cristãos, não há muito tempo para perder com dramas e religiosidade, pois é assim que a sociedade hoje age e por isso traduz aos filmes, tudo é muito e cada vez mais rápido, o que importa é ação. O cinema poderia muito bem mesclar esse trabalho. A impressão que fica é que o passado está sendo desvalorizado,o que importa é o agora, uma sociedade sem memória, que não se situa em lugar algum, sem teto e não querendo fazer trocadilho com o filme, uma nau sem comandante.

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