Haruna tem apenas doze anos e já carrega o mundo nas costas. Já na primeira cena de O Desejo da Minha Alma, a menina escava os destroços da casa onde morava, tentando salvar sua família – ou o que restou dela. Em sua tentativa de entender a tragédia que a cerca e aplacar sua dor, Haruna ganha a certeza de que o terremoto que devastou a vizinhança e matou seu pai e sua mãe aconteceu por causa dela. À garota, resta conviver com uma culpa que não divide com ninguém e a obrigação de proteger o irmãozinho, Shôta, que aos cinco anos precisa ser preservado da notícia de que perdeu os pais.
Se a personagem principal está ensaiando os primeiros passos de uma precoce vida adulta, Masakazu Sugita também está começando. Este é seu primeiro longa-metragem como diretor, mas a temática e a abordagem que ele utiliza para contar sua história revelam um cineasta incrivelmente maduro para tratar de temas delicados com uma abordagem ainda mais delicada e sob o olhar de uma criança. Sugita faz de seu filme, muito mais do que uma história de luto. O Desejo da Minha Alma parece tentar decifrar a complexa relação que a sociedade japonesa tem com a morte.
Se de um lado, a história ensinou o japonês a enxergar o fim da vida como um processo natural e honrado, como provam dos harakiris dos samurais aos cortejo fúnebres que cumprem uma liturgia de celebração; do outro, o Japão é um país que sobreviveu a uma das maiores tragédias humanas e transformou sua reconstrução econômica num modelo de comportamento. Não é difícil entender porque um povo afeito a uma rotina rígida de planejamento desmorone diante de uma catástrofe natural. Além de ser uma menina que acabou de perder os pais, Haruna carrega a herança traumática de um povo, o que torna as coisas bem mais difíceis pra ela.
Sugita acertou em cheio na escolha da protagonista. Silenciosa, Ayane Ohmori traduz o peso invisível que carrega sua personagem em olhares e gestos. Reprisando comportamentos milenares, Haruna não divide a responsabilidade sobre suas dores com ninguém, nem abre espaço para que quem está a sua volta possa ajudá-la. Existem duas cenas que demonstram claramente como o diretor enxerga a menina. Numa delas, a tia que a adotou e que penteia seu cabelo se distrai com o sobrinho pequeno e Haruna, que havia se apegado àquele minúsculo momento de epifania, desperta. Ao se perceber sozinha, expulsa o sorriso que havia se instalado em seu rosto.
Em outra cena fotografada com imensa delicadeza, a menina que acaba de ouvir de um professor que pode contar com ele neste momento difícil, se despede com a cabeça e mergulha lentamente num corredor para sair da escola. Como se, educadamente, rejeitasse a ajuda oferecida. Ao som da música melancólica que pontua todo o filme, Sugita mantém a câmera estática até que a menina desapareça no fim do corredor, como se quisesse avisar ao espectador que Haruna se mantém fiel ao sofrimento que acredita ser sua sina. Por mais que pareça pessimista, o diretor trata a personagem com todo o carinho que pode.
O contraponto e maior carrasco, mesmo que inconscientemente, de Haruna é seu irmãozinho. A alegria de Shôta, vivido pelo adorável Riku Ohishi, é um bálsamo para o pesar da menina. Mas suas perguntas insistentes sobre o paradeiro dos pais machucam a irmã mais do que qualquer coisa. Lidar com sentimentos e situações tão complexas esgota a protagonista ao mesmo tempo em que inspira um cineasta delicado a encontrar um desfecho cheio de esperança para duas crianças que carregam mais do que podem suportar.
O Desejo da Minha Alma ½
[Hitono Nozomino Yorokobiyo, Masakazu Sugita, 2014]
https://www.youtube.com/watch?v=MuupPssIqsM
Os sentimentos humanos apesar de que deveriam ser semelhantes para os fatos da vida sofrem influências da sociedade . Sou filho de japoneses (66 anos de idade) e muitos dos ensinamentos que meus pais passavam para os filhos eu só pude compreender vivendo no Japão por sete anos. Os 5″esses” naquele país é regra a ser seguida desde o nascimento e não é “novidade” gerencial de empresas; ética de conduta, honestidade, responsabilidade e cumprir o que se espera é algo intrínseco à alma do ser japonês e sua violação é a vergonha que num passado antigo a família que tivesse um filho reprovado na escola era motivo para mudar de província. Apesar do Japão manter a pena capital as autoridades divulgam nas mídias que prisioneiros foram executados, mas jamais divulgam os nomes para preservarem os familiares que serão oficialmente avisados. Acho que será um filme de difícil compreensão para estrangeiros (brasileiros).