O Prisioneiro da Grade de Ferro

A verdade. Busca quase obsessiva de quem tenta contar uma história que aconteceu ou que acontece. Raramente exata, fartamente discutível. A incansável procura pela verdade é responsável por alguns dos maiores pecados do documentarista, o cineasta que deveria narrar um fato real sem a ajuda da ficção. A verdade que parece certa é aquela que tem tom de denúncia, que aparece para apontar culpados, revelar segredos, descobrir conspirações. É a tentativa de filme com função social ressaltada, destacada, elevada.

Nos últimos tempos, o documentário tenta assumir novas formas com novos objetivos. E alcança resultados muito irregulares. Alguns apontam para construções narrativas fora do padrão, outros muitos investem na proximidade com os programas televisivos comandados por apresentadores espertos que se travestem de portadores dela, a verdade. No meio do caminho, uma sucessão de excessos é cometida em seu nome. Ônibus 174 é um belo exemplo. O (ótimo) trabalho de investigação em torno do homem que matou uma mulher ao assaltar um coletivo no Rio de Janeiro se dedicou com tanta eficiência em explicar as motivações de seu protagonista que peca por quase querer justificar um homicídio.

Diante de um cenário muito propenso ao sensacionalismo, é admirável, extremamente admirável, que surja um filme como O Prisioneiro da Grade de Ferro, excelente longa de estréia de Paulo Sacramento, que trabalha com um tema justamente propenso à parcialidade: o Carandiru. Mas se o primeiro juízo a se fazer sobre um filme que se propõe a mostrar a realidade dentro do presídio é este, o diretor segue por uma estrada completamente avessa ao maniqueísmo. Ele entrega sua câmera para que seus personagens mostrem o que quiserem.

O filme, fruto de um curso de cinema e vídeo comandado por Sacramento dentro das grades da penitenciária – pouco antes de sua desativação e conseqüente implosão -, alcança um nível de desprendimento quase total. Seria ingênuo demais afirmar que a câmera do diretor (ou ainda, dos detentos) é completamente franca, sem cálculo, mas o naturalismo que os cineastas-narradores emprestam ao documentário é bem mais honesto que a tentativa tosca de culpar a construção de um país pelo massacre de Columbine. Quase amadores, os presidiários apresentam seu cotidiano com relativamente pouca interferência de um interlocutor. Eles comandam as cenas.

O mais louvável no filme é que ele nunca é um filme-denúncia. O Prisioneiro da Grade de Ferro é muito mais retrato do que acusação. As denúncias obviamente existem, mas surgem espontâneas dentro do mapa traçado pelo diretor. O filme começa político para se tornar familiar. Conta as pequenas histórias de cada personagem. Numa cena particularmente bonita, um pitbull bombadão se transforma num exemplo de prisioneiro, de bom marido. Nesse aspecto, a montagem creditada ao cineasta merece destaque: pula de cela em cela, apresentando, revelando um pouco da investigação particular de cada detento, e finalmente integrando as particularidades ao todo do presídio. Constrói a sua própria verdade a partir dos olhares mais honestos que poderia colher. À medida que o tempo passa, cresce o poder de discurso do filme, que alcança prismas mais sombrios, como o satanismo e o comércio de drogas. E mais uma vez, o faz com desprendimento. O longa de Paulo Sacramento avisa que a verdade é fragmentada e está sendo recriada a todo momento.

O Prisioneiro da Grade de Ferro ****½
[O Prisioneiro da Grade de Ferro, Paulo Sacramento, 2003]

Comentários

comentários

2 comentários sobre “O Prisioneiro da Grade de Ferro”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *