ESCULTORES DA VERDADE

Tim Burton e François Ozon dissertam, cada um a seu modo, sobre onde termina a fantasia e começa a realidade

Uma das funções de um artista é dar credibilidade àquilo que faz. Um cineasta, então, tem uma responsabilidade assustadora: tornar real o recorte de um universo. Se esse universo se apresenta dentro dos padrões pré-estabelecidos, mais fácil é a missão. Tim Burton vai na direção oposta, sempre criando universos inteiros, desobedecendo a ordem e desafiando os conceitos de estética. Seus filmes sempre guardam personagens bizarros, cenografias alegóricas, criaturas de outros mundos. Seu universo é aquele. Diante desta obra, Peixe Grande, o último longa dirigido por Burton, é o menos fantasioso de seus filmes. Por que, então, todo mundo diz que este é seu trabalho mais pessoal?

Não dê muita importância quando dizem que o filme resgata a relação do diretor com seu pai. Isso não o torna nem mais nem menos pessoal. O filme se baseia num romance e, por mais que Burton adote esta história como sua, ela já existia. O que importa na história da busca de um homem pela verdadeira história de seu pai é que o cineasta nos apresenta uma de suas verdades mais importantes: o mundo é como você acredita que ele seja. Para defender sua tese, Peixe Grande, pela primeira vez na obra do cineasta, apresenta dois universos: o do mundo real, onde acompanhamos a doença de Albert Finney, e o da memória, onde seu alter ego jovem, Ewan McGregor, encontra gigantes, gêmeas siamesas e bruxas. Entre as duas linhas narrativas, um Billy Crudup disposto a reordenar o caos.

Em Peixe Grande, Tim Burton se aproxima de Fellini quando abre mão da verdade para reescrever as memórias de seu protagonista. Ele recheia os hiatos com algodão colorido e embarca a caminho da fantasia, como de costume. Mas o objetivo é outro. A transformação, marca que sempre caracterizou os filmes do diretor, aqui é menos de cenário e mais de história. Os limites entre os dois universos surgem bem definidos, mas se esvaecem até desaparecer por completo. O objetivo é passar a borracha nas barreiras que separam o que se entende por fato e o que é conto. Um conto que não é de fadas ou de bruxas, mas daquele que escolheu para si uma história muito mais interessante para guardar na memória. Alguém que virou o personagem que criou para si mesmo.

François Ozon faz, em Swimming Pool, uma reflexão semelhante. O filme mostra o encontro de uma escritora em crise criativa e uma jovem de espírito livre e corpo ainda mais. O cineasta estrutura sua obra como um drama onde uma é a inspiração para a outra até nos revelar um filme metalingüístico sobre a arte de escrever uma história. Consegue costurar isso tudo e ainda citar os filmes noir norte-americanos, trazendo elementos kitsch à narrativa, com personagens livres de pudor e associando a figura feminina ao perverso.

Em proporções mais discretas, o cineasta lembra David Lynch em muitos de seus filmes ao utilizar alguns elementos de sonho para desenvolver sua trama, incorporando pequenos espasmos de realidade na história que se põe a contar. Personagens trocam de papéis durante a trama, assumindo postos mais úteis para o desenvolvimento da história. Como Burton, ele joga nas mãos do espectador o poder de determinar os limites entre fato e conto, ou a possibilidade de escolher a ambigüidade, porque a função de um criador de histórias é justamente fazer com que seu universo seja crível o suficiente para existir. Mas, quem define o quão real ele é, é quem lê o livro ou vê o filme. O mundo é como você acredita que ele seja.

PEIXE GRANDE
Big Fish, Estados Unidos, 2003.

Direção: Tim Burton.

Roteiro: John August, baseado no romance Big Fish: a Novel of Mythical Proportions.

Elenco: Ewan McGregor, Albert Finney, Billy Crudup, Helena Bonham-Carter, Jessica Lange, Steve Buscemi, Allison Lohman, Danny De Vito, Robert Guillaume, Marion Cottillard, Matthew McGrory, Hailey Anne Nelson.

Produção: Bruce Cohen e Dan Jinks. Fotografia: Philippe Rousselot. Edição: Chris Lebenzon. Música: Danny Elfman. Direção de Arte: Dennis Gassner. Figurinos: Colleen Atwood. Canção: Man of The Hour, Pearl Jam.

SWIMMING POOL
Swimming Pool, França/Grã-Bretanha, 2003.

Direção: François Ozon

Roteiro: François Ozon e Emmanuèle Bernheim.

Elenco: Charlotte Rampling, Luduvine Sagnier, Charles Dance

Produção: Olivier Delbolsc e Marc Missonier. Fotografia: Yorick Le Saux. Edição: Monica Coleman. Música: Philippe Rombi Direção de Arte: Wouter Zoon. Figurinos: Pascaline Chavanne.

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