Riocorrente

“As ideias precisam voltar a ser perigosas”, afirma uma das protagonistas de Riocorrente, filme de Paulo Sacramento que entra em cartaz depois de circular em alguns dos festivais mais importantes do país. A frase, além de traduzir a inquietude das personagens do primeiro longa de ficção do diretor, parece ser uma pista das intenções do próprio cineasta na realização de seu filme. Sacramento declara guerra ao status quo, combate a imobilidade e o conformismo do mundo contemporâneo com um roteiro que muitas vezes se abstém da dramaturgia, do texto, para trabalhar com simbolismos, experiências visuais e sonoras – e sensações. Sem medo de recorrer ao clichê, Riocorrente é o filme sensorial por excelência.

Um jornalista desiludido e um ladrão de carros que tenta começar uma nova vida dividem o amor de uma mesma mulher. Ambos vivem em conflito com o que se tornaram e com o que está em seu entorno. Cada um reage a sua frustração de uma maneira diferente. Cercando todos os eles, com uma espécie de Vigia, o personagem da Marvel que observa a tudo, mas não interfere em nada, está Exu, um menino de rua que passeia pelo mundo. É ele quem nos conduz, nos apresenta o mundo, nos permite esse olhar diferente sobre o cotidiano. Olhar que se volta não apenas para o mecanismo da sociedade, mas abre uma discussão importante sobre o que é a arte. A arte que aparece “morta”, ornando um cemitério não é a mesma arte que Paulo Sacramento comete em Riocorrente. Este, como poucos filmes recentes do cinema brasileiro, é uma obra de arte viva.

O roteiro começou a ser esboçado há dez anos, logo depois que Sacramento concluiu o excelente O Prisioneiro da Grade de Ferro, seu longa de estreia, com o qual o novo filme tem, guardando as devidas proporções, algumas semelhanças conceituais. Ambos desconstroem a narrativa clássica, rejeitam o começo-meio-e-fim. Se no documentário filmado nos últimos dias de atividade do Carandiru, esse rompimento com os padrões acontece quando o diretor entrega a câmera para que os detentos filmem suas vidas, renegando a figura do cineasta como contador de histórias, senhor da narrativa, em Riocorrente, essa ousadia vem quando Sacramento elege a plástica sonora como protagonista do filme, reservando para os personagens o direito de erguer suas vidas no meio do caos urbano.

A imagem mais forte do filme, que estampa inclusive os cartazes do longa, mostra um Rio Tietê em chamas, numa utilização inédita de efeitos especiais no cinema brasileiro. Sobretudo num cinema arthouse, independente, feito com poucos recursos. A cena, ápice do desconforto do ex-ladrão de carros com sua vida, o mundo, Deus, materializa toda a premissa do filme, de que é preciso apostar no risco para permitir a transformação. Seus simbolismos, ao mesmo tempo em que conversam com um cinema de “mestres malditos” de outras gerações, emolduram um debate completamente contemporâneo. “Eu queria sujar as minhas mãos”, confessa o diretor, justificando suas liberdades e rebeldias.

E esse cinema arriscado, embora cheio de códigos, mesmo que não pareça palatável para alguns espectadores provavelmente captura outros tantos por traduzir algumas questões que pareciam intangíveis. Riocorrente está mais para um grito de guerra, um chamado para o combate, onde o diretor conclama os inconformados para a luta. Sacramento ousa no discurso e ousa ainda mais na forma. O cineasta está disposto a provocar e, para isso, não se acanha em materializar suas “ideias perigosas”, explosivas, que revelam um homem inconformado com o status quo, um artista em perpétuo desconforto e, mais do que isso, um cinema que não se contenta em ser um só.

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[Riocorrente, Paulo Sacramento, 2013]

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