Sobre Meninos e Lobos

Clint Eastwood é um homem norte-americano. Um herói norte-americano. Um mito norte-americano. O caminho que escolheu seguir no cinema, então, é surpreendente. De cowboy italiano a policial linha dura, sua carreira como ator é formada por tipos fortes, homens cuja virilidade inquestionável raramente deixava espaço para algo além da truculência. Mas o trabalho de ator não guardava todos os espasmos que Eastwood abrigava dentro de si e ele resolveu ser um cineasta. E foi nessa função que o herói revelou sensibilidade raramente vista em alguém com uma trajetória semelhante a sua. Primeiro, recriou um western clássico em O Cavaleiro Solitário (85). Depois, ajoelhou e pediu a benção ao jazz em Bird (88). Voltou ao Oeste e criou um filme à moda antiga no definitivo Os Imperdoáveis (92). E resolveu falar sobre a mulher e o amor que só a mulher pode guardar em As Pontes de Madison (95).

É, homens assim como Clint Eastwood podem vir a ser diretores bem poéticos. É o que muitos atribuem a uma alma feminina. Sensibilidade é comumente associada à figura da mulher. É bem verdade que, muitas vezes, na maioria delas, elas, as mulheres, são bem mais sensíveis que nós, os homens. Mas nem sempre a comparação vale. Pedro Almodóvar, o espanhol, nunca negou a homossexualidade. Seu Fale com Ela (02) é um filme extremamente sensível, mas nunca feminino. Pelo contrário. É sobre os caminhos mais perturbadores da masculinidade, sobre um amor que só o homem pode guardar. Se Almodóvar pode ser sensível sem necessariamente ser feminino, o que dizer de Clint Eastwood?

Sobre Meninos e Lobos, o último filme dirigido pelo herói norte-americano, é a desconstrução de qualquer resquício da imagem estereotipada do cineasta que ainda vaga por aí. É um filme triste e amargo, como a sensibilidade reservada para o homem deve ser. Pelo menos para os três protagonistas desta história e para o bairro onde eles nasceram. Eastwood se apropria do livro de Dennis Lehane, para contar um pedaço da vida de três homens, que já foram quase amigos e que viveram na infância uma pequena tragédia que mudaria os rumos de suas vidas. Uma coisa leva a outra. Jimmy, Dave e Sean cresceram e tomaram caminhos diferentes. Não se misturam mais, mas ainda cruzam os caminhos, um do outro. Uma nova pequena tragédia junta (e separa) os três.

Clint Eastwood ensaia uma trama de mistério, bem mais palatável para os amantes de Dirty Harry, mas oferece um duelo para o espectador. Duelo entre verdade e mentira, entre justiça e violência e entre amizade e vingança. Escolhe três ícones do cinema dos anos 80 como protagonistas. Sean Penn recupera a truculência de um Robert De Niro clássico, Tim Robbins exagera nas caras e bocas e Kevin Bacon cerra os dentes e segue a vida. Os três personagens têm modelos estereotipados: o violento, o perturbado e o correto. Mas o roteiro e a direção os desenham com tantas possibilidades que somem as linhas e ficam apenas as cores. E é isso que faz a história andar. Mais valem os homens e seus motivos e suas questões que os fatos e as situações.

A direção de atores é fenomenal: se o roteiro privilegia os personagens, a direção democratiza as interpretações, que só existem uma em função da outra, sem grandes destaques individuais. Um faz o outro fluir. Sean Penn dá o exemplo. Seu Jimmy Markun poderia ser um líder marginal a exemplo dos protagonistas de filmes de Martin Scorsese ou Abel Ferrara, mas ele se insere com tanta facilidade e competência nos contextos criados a cada cena, que nunca domina o filme. Kevin Bacon é uma grande surpresa, contido e firme. E se o casal Tim Robbins e Marcia Gay Harden, casal no filme, abusa dos olhares de desconfiança ou de descontrole, Laura Linney cristaliza sua condição de musa, com uma cena em especial onde revela realeza.

Força bruta e delicadeza. Em Sobre Meninos e Lobos, Clint Eastwood não abandona a violência. Ele esmurra o espectador com força. Um homem sensível.

Sobre Meninos e Lobos ****
[Mystic River, Clint Eastwood, 2003]

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