Enquanto Alexandre Frota vai ao Ministério da Educação junto com integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), grupo financiado por PMDB, PSDB, DEM e Solidariedade, para discutir ideologia de gênero, o cinema amplia as discussões sobre todas as formas de sexualidade. Tempos atrás, depois de uma extensa pesquisa que tomou meses, assistindo filmes, entendendo contextos, medindo relevâncias, relacionando expressão artística aos movimentos da sociedade, elaborei uma lista com os que eu considerava ser os 40 melhores filmes de temática gay de todos os tempos. A palavra gay estava lá muito mais para indicar sexualidades diferentes do padrão heteronormativo. Na verdade, e agora eu corrijo no título, a ideia era englobar os melhores filmes de temáticas LGBT.
Alguns anos se passaram e chegou a hora de revisitar e reeditar esta lista. Nos últimos anos, obras importantes como Carol e Tangerine, para ficar em apenas dois exemplos, chegaram aos cinemas, ganharam prêmios, geraram discussão. Nos últimos anos também, tive mais acesso a outras obras de referência e a filmografias de cineastas realmente engajados politicamente com a causa LGBT, como Rainer Werner Fassbinder, Rosa von Praunheim e Derek Jarman. Revisar esta lista era, mais do que instigante, necessário, embora eu ache que todas as listas refletem uma época, um recorte, o pensamento de quem a elaborou e não me arrependa nada da minha primeira relação.
Cada filme que aparece, tanto na relação original quanto nesta nova versão, está por um motivo, seja pioneirismo, engajamento, representatividade, apuro estético, experimento de linguagem. As razões são diversas. Todas, a meu ver, importantes. Na minha revisão, a lista ganhou uma edição metabolizada. O Top 40 agora tem a companhia de mais 14 títulos, são 54, e ainda acrescento uma relação extra, sem ordem de preferência com outros 56 filmes bastante significativos para as questões LGBT, que podem e devem servir de referência para quem se interessa pelo assunto.
Primeiro, a lista complementar:
Adeus Minha Concubina
[Ba Wang Bie Ji, Chen Kaige, 1993]
Amigas de Colégio
[Fucking Åmål, Lukas Moodysson, 1998]
O Amor Não Tem Sexo
[Prick Up Your Ears, Stephen Frears,1987]
O Banquete de Casamento
[Xi Yan, Ang Lee, 1993]
Born in Flames
[Born in Flames, Lizzie Borden, 1983]
Cabaret
[Cabaret, Bob Fosse, 1972]
Café com Leite (assista)
[Café com Leite, Daniel Ribeiro, 2007]
Canções de Amor
[Le Chansons d’Amour, Christopher Honoré, 2007]
Um Canto de Amor
[Un Chant d’Amour, Jean Genet, 1950]
Contracorrente
[Contracorriente, Javier Fuentes-León, 2009]
Coronel Redl
[Oberst Redl, István Szabó, 1985]
Delicada Relação
[Yossi & Jagger, Eytan Fox, 2002]
Deuses e Monstros
[Gods and Monsters, Bill Condon, 1998]
Doce Amianto
[Doce Amianto, Guto Parente & Uirá dos Reis, 2013]
E a Vida Continua
[And the Band Played On, Roger Spottiswoode, 1993]
Eduardo II
[Edward II, Derek Jarman, 1991]
Eu Não Quero Dormir Sozinho
[Hei Yan Quan, Tsai Ming-Liang, 2006]
Eu Não Quero Voltar Sozinho (assista)
[Eu Não Quero Voltar Sozinho, Daniel Ribeiro, 2010]
Filadélfia
[Philladelphia, Jonathan Demme, 1993]
Furyo, em Nome da Honra
[Merry Christmas Mr. Lawrence, Nagisa Ôshima, 1983]
A Gaiola das Loucas
[La Cage aux Folles, Édouard Molinaro, 1978]
Hairspray – Éramos Todos Jovens
[Hairspray, John Waters, 1988]
O Jovem Törless
[Der Junge Törless, Volker Schlöndorff, 1966]
Juventude Transviada
[Rebel Without a Cause, Nicholas Ray, 1955]
Madame Satã
[Madame Satã, Karim Aïnouz, 2002]
Maurice
[Maurice, James Ivory, 1987]
O Menino e o Vento
[O Menino e o Vento, Carlos Hugo Christensen, 1967]
Meninos Não Choram
[Boys Don’t Cry, Kimberly Pierce, 1999]
Mikaël
[Mikaël, Carl Th. Dreyer, 1924]
Mistérios da Carne
[Mysterious Skin, Gregg Araki, 2007]
Morango e Chocolate
[Fresa y Chocolate, Tomás Gutiérrez Alea & Juan Carlos Tabío, 1993]
Onda Nova
[Onda Nova, José Antonio Garcia & Ícaro Martins, 1983]
Orlando, a Mulher Imortal
[Orlando, Sally Potter, 1992]
Otto; Or Up with Dead People
[Otto; Or Up with Dead People, Bruce LaBruce, 2008]
Pariah
[Pariah, Dee Rees, 1001]
Perdidos na Noite
[Midnight Cowboy, John Schlesinger, 1968]
Plata Quemada
[Plata Quemada, Marcelo Piñeyro, 2000]
Portrait of Jason
[Portrait of Jason, Shirley Clarke, 1967]
The Queen
[The Queen, Frank Simon, 1968]
Querelle
[Querelle, Rainer Werner Fassbinder, 1982]
A Rainha Diaba
[A Rainha Diaba, Antonio Carlos da Fontoura, 1974]
O Rio
[He Liu, Tsai Ming-liang, 1997]
The Rocky Horror Picture Show
[The Rocky Horror Picture Show, Jim Sharman, 1975]
São Paulo em Hi-Fi
[São Paulo em Hi-Fi, Lufe Steffen, 2013]
Sex in Chains
[Geschlecht in Fesseln, William Dieterle, 1928]
Shortbus
[Shortbus, John Cameron Mitchell, 2006]
Tabu
[Gohatto, Nagisa Ôshima, 1999]
Taxi para o Banheiro Masculino
[Taxi Zum Klo, Frank Ripploh, 1980]
O Tempo que Resta
[Le Temps qui Reste, François Ozon, 2005]
As Testemunhas
[Les Témoins, André Techiné, 2007]
Thelma & Louise
[Thelma & Louise, Ridley Scott, 1991]
Triângulo Feminino
[The Killing of Sister George, Robert Aldrich, 1968]
Tudo Sobre o Meu Pai
[Alt om Min Far, Even Benestad, 2002]
Velvet Goldmine
[Velvet Goldmine, Todd Haynes, 1997]
Veneno
[Poison, Todd Haynes, 1991]
Vitor ou Vitória
[Victor/Victoria, Blake Edwards, 1982]
Um breve histórico do cinema LGBT
Somente nas duas últimas décadas, o largo espectro das orientações e condições sexuais conseguiu encontrar um variado e substancioso conjunto de representações no cinema. Gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, drag queens, entre outros, podem ser encontrados, hoje, em larga escala, em filmes que ultrapassaram o gueto do cinema de classe e que assumem tanto as estruturas de gêneros clássicos, como dramas, comédias e filmes de suspense e de terror, como trazem a orientação sexual para um campo de normalidade que permite se ater a detalhes antes soterrados porque a questão maior já era a ousadia do tema em si.
Embora o cinema “gay” – e aqui gay engloba todas essas sexualidades diferente do padrão homem-mulher, tenha conseguido renegociar sua posição na produção de filmes, ao longo desses 120 anos de cinema, houve muitos projetos que foram pioneiros em explorar as questões ligadas ao comportamento e ao universo homossexual. Há críticos que insistem que um dos primeiros filmes, o curta-metragem The Dickson Experimental Sound Film, de William Dickson, um filme sonoro realizado mais de 30 anos antes do som chegar de fato ao cinema, teria personagens com um comportamento nitidamente homossexual. No filme, que você pode assistir abaixo, dois homens dançam ao som de um instrumento musical.
Há bastante controvérsia. Alguns estudiosos dizem que o registro da dança entre dois homens teria chocado plateias, enquanto outros afirmam que aquele comportamento seria comum entre homens na época. A época é, no caso, 1895, o ano da “invenção do cinema”. Forçação de barra ou não, outros exemplos de possíveis manifestações homossexuais no cinema podem ser conferidos – e geram polêmica – nos anos seguintes. Em 1907, Georges Méliès dirigiu O Eclipse: Ou a Corte do Sol à Lua, em que um astro-rei viril seduz uma lua efeminada. Alguns estudos dizem que sol e lua seriam do gênero masculino e que o momento do eclipe seria, de fato, uma relação homossexual. A primeira do cinema.
Nos anos seguintes, as comédias flertaram com os temas gays. Algie, The Miner, de Alice Guy-Blaché, mostra um homem efeminado que precisa se livrar do estigma de que “beija cowboys” para conseguir namorar a filha de um ricaço. Charles Chaplin usou roupas femininas em A Mulher e seduziu vários homens. E em A Florida Enchantment, de Sidney Drew, uma mulher engole uma semente mágica que a transforma em homem e seu noivo faz o mesmo e vira um homem “afetado”. Todos estes filmes são da primeira metade da década de 1910 e todos têm um quê de brincadeira. Mas pouco depois disso começaram na Europa as primeiras tentativas de se fazer filmes “sérios” sobre o assunto.
Na Suécia, Mauritz Stiller adaptou o romance Mikaël, de Herman Bang, sobre a relação entre um pintor aclamado e seu pupilo, abalada pela chegada de uma condessa que seduz o jovem, em The Wings, de 1916. O dinamarquês Carl Theodore Dreyer refilmou o livro em 1924 usando o título original, Mikaël. Pela primeira vez, se a história não engoliu algum pioneiro, temos personagens gays representados no cinema. Em 1919, numa Alemanha onde a Constituição considerava a prática homoafetiva como crime, Richard Oswald se une ao físico e sexólogo Magnus Hirschfeld para rodar Diferente dos Outros, que também conta a história de um artista, um músico, e um homem mais jovem. A chantagem contra os homossexuais, algo que era comum no país na época, é um dos temas centrais do filme.
Nas décadas seguintes, nos mais diversos cantos do planeta, censurados ou não, usando subtextos ou sendo mais explícitos, muitos diretores, alguns bastante conceituados, no auge de suas carreiras e heterossexuais, resolveram contar histórias de homoafetividade. De simples romances ao retrato de comportamento de guetos, de cidadãos “comuns” a estereótipos, muitos deles foram bastante felizes em dar sua contribuição para o gênero no cinema. Basta clicar no link abaixo para acessar minha lista com os melhores filmes com temática LGBT de todos os tempos.
51 Um Gosto de Mel
[A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961]
A homossexualidade não é o tema central de Um Gosto de Mel, mas esta pérola de Tony Richardson teve um papel de avant-guard numa Inglaterra em que ser gay era crime (até 1967). O filme é sobre a perda da inocência de uma adolescente. Abandonada pela mãe que encontrou um namorado mais jovem e esperando um bebê de um marinheiro negro que partiu para o mar, a adolescente encontra abrigo nos braços de Geoff, um homem gay que quer assumir a criança. Richardson traz os debates para um plano de naturalidade que nunca trata a homossexualidade como algo diferente. O filme é triste e desesperançado porque a vida também poder ser assim.
50 O Celuloide Secreto
[The Celluloid Closet, Rob Epstein & Jeffrey Friedman, 1995]
Mais do que um imenso trabalho de pesquisa e prospecção de seus diretores, O Celuloide Secreto é um dos mais completos documentos sobre como o cinema americano, mais especificamente o hollywoodiano, tratou a homossexualidade ao longo dos anos. Dos pudores e da censura às mensagens cifradas e aos diálogos construídos cheios de sentidos figurados, o filme ajuda a apontar pioneiros, militantes e simpatizantes da causa LGBT. Um dos grandes momentos do longa é a entrevista de Gore Vidal, que conta como enganou Charlton Heston sobre a relação homossexual implícita que havia entre Ben-Hur e Messala, vivido por um consciente Stephen Boyd.
49 Morrer como um Homem
[Morrer como um Homem, João Pedro Rodrigues, 2009]
O drama de Morrer como um Homem está registrado no próprio título do filme. Tonia é uma travesti veterana, que se vê ameaçada pelas colegas mais novas, recebe a visita do filho que abandonou, descobre estar doente e é pressionada pelo namorado que quer que ela faça a cirurgia para mudar de sexo. A protagonista se vê acossada pelo mundo e em crise com sua fé, que a faz acreditar que sempre será um homem aos olhos de Deus. O dilema da personagem, o de sacrificar sua essência em prol do amor, a levará para uma espécie de floresta encantada onde as coisas podem se resolver definitivamente ou não.
48 As Amizades Particulares
[Les Amitiés Particulières, Jean Delannoy, 1964]
O amor entre Georges e Alexandre é inocente, mas não deixa de causar um certo desconforto em As Amizades Particulares, filme ousado de Jean Delannoy. O mal estar não tem a ver com o fato de que os dois são do mesmo sexo, mas porque enquanto um está no auge da puberdade, ensaiando a entrada na vida adulta, o outro tem apenas 12 anos e preserva suas feições de criança. O diretor sabe disso e explora esse incômodo o quanto pode mesmo que o filme nunca insinue que mais do que mostra. O maior aliado de Delannoy é o precoce Didier Haudepin, dono de uma interpretação impressionante, cujos traços femininos e a sagacidade no jogo de palavras explica o fascínio que exerce.
47 Satyricon de Fellini
[Fellini-Satyricon, Federico Fellini, 1969]
A anarquia da Roma antiga abrindo espaço para todas as possibilidades sexuais, inclusive as mais perversas. Satyricon nem sempre é lembrado como um dos melhores filmes de Fellini, mas sua versão para a peça escrita do Petrônio no século I. Enquanto tentam conquistar Gitón, por quem estão apaixonados, os meninos Encolpius e Ascyltus se encontram no meio dos episódios mais surreais do império de Nero, que envolvem de pedofilia a antropofagia. O contexto lisérgico do fim dos anos 60 e a própria condição do texto original, que só existia em fragmentos, permitiu que o cineasta italiano soltasse sua imaginação fértil sem qualquer amarra. Visualmente empolgante, Satyricon se mantém como o Fellini mais radical.
46 Azul é a Cor Mais Quente
[La Vie d’Adèle – Chapitres 1 et 2, Abdellatif Kechiche, 2013]
As longas, realistas e detalhadas cenas de sexo entre as duas protagonistas não são o maior mérito de Azul é a Cor Mais Quente. O filme de Abdellatif Kechiche acerta mesmo é na maneira natural como apresenta o relacionamento entre as duas personagens, uma história de amor como outra qualquer. A intimidade está em primeiro plano e Adéle Exarchopoulos e Léa Seydoux abusam dela sem precedentes. Embora a discussão tenha se limitado às cenas de sexo, Kechiche filma é a grande tragédia da vida, os encontros e desencontros dos personagens, parando aqui e ali para se deixar seduzir pelo desejo.
45 Irmãos
[Son Frère, Patrice Chereau, 2003]
De todos os filmes que abordaram a Aids, Irmãos talvez seja o que mais bem dirigido. Nos anos 80, Thomas descobre que tem uma doença no sangue que destrói sua resistência imunológica e pede a ajuda do irmão homossexual Luc, com quem havia perdido o contato durante muito tempo. Patrice Chéreau usa esse reencontro para dar nuances à parceria dos dois e, reiventando a cronologia de sua história recente, entre cortes secos e diálogos cruéis e sem clima conciliatório, nos oferece golpes do amor entre os dois irmãos. Por mais que seja doloroso para ambos, Thomas e Luc só querem estar juntos pela última vez.
44 Febre de Primavera
[Chun Feng Chen Zui De Ye Wan, Lou Ye, 2009]
Lou Ye é um herói da liberdade de expressão numa China em que temas proibidos não faltam. Depois de ser punido por fazer um filme sobre o massacre da Praça da Paz Celestial, ele desafiou novamente as autoridade com Febre de Primavera, em que um detetive contratado por uma mulher para espionar seu marido, que tem um amante, termina por se envolver sexualmente com ele. Enquanto filma as fortes cenas de sexo com uma ousadia quase explícita, o cineasta divide seu filme com poemas sobre amor, minimizando a barreira entre romance e sexo e naturalizando o comportamento dos personagens.
43 A Consequência
[Die Konsequenz, Wolfgang Petersen, 1977]
A Consequência segue uma linhagem muito comum a uma literatura gay que denuncia o preconceito ao homossexual através do sofrimento de seus personagens. A diferença está na maneira como Wolfgang Petersen, um cineasta que construiria uma carreira voltada para temas bem masculinos em sua maioria, desenvolve a trama. O tom seco, realista e a fotografia em preto-e-branco deixam os acontecimentos na vida de Thomas, o jovem filho de um carcereiro que se apaixona por um prisioneiro, ainda mais cruéis. Ainda que o roteiro obedeça a um formato de melodrama trágico, o filme se baseia num livro autobiográfico do suíço Alexander Ziegler, que ficou preso por dois anos por “sedução de inocente levando a atos antinaturais”.
42 Traídos pelo Desejo
[The Crying Game, Neil Jordan, 1992]
Traídos pelo Desejo trata de uma transferência de afetos. Um integrante do IRA, vivido por Stephen Rea, assume o compromisso de cuidar da namorada de um homem que mantém como refém depois que ele morrer. O terrorista termina se envolvendo com a garota e desenvolve por ela um comportamento obsessivo até descobrir seu mais íntimo segredo. Por mais que este filme se estruture sobre o suspense, a descoberta final é menos importante do que as questões que o thriller levantou até ali: até onde vai o desejo? A partir de quando esse desejo vira amor? E esse amor seria capaz de se sobrepor aos limites de gênero?
41 Um Dia Muito Especial
[Una Giornata Particolare, Ettore Scola, 1977]
A visita de Hitler à Itália fascista é o cenário para que uma dona de casa reflita sobre preconceito e aceitação. Antonieta está cheia de tarefas domésticas e não acompanha o marido e o filho, que saem às ruas com uma multidão para comemorar a chegada do ditador alemão. Por acaso, esbarra no vizinho Gabriele, um homossexual que acabara de ser demitido da rádio onde era locutor por causa de sua orientação e está prestes a acabar com a própria vida. O encontro entre os dois desperta questionamentos que aquela mulher nunca se permitiu no meio de um regime opressor, machista e injusto que governa o país e sua própria casa.
40 Rosas Selvagens
[Les Roseaux Sauvages, André Techiné, 1994]
Rosas Selvagens é o canto de André Techiné às transformações da adolescência. Parcialmente baseado nas memórias do diretor, o filme acompanha quatro jovens que enfrentam as dúvidas e expectativas do mundo adulto. Cada um com seus dilemas, desafiando o desconhecido e tentando afirmar sua personalidade a sua maneira. Um deles é François, que começa a exercer sua sexualidade, reprisada por códigos e regras. Seu fascínio pelo amigo Serge vai levar os dois para um exercício de intimidade que modificará para sempre a relação entre eles e sua visão de mundo. Gaël Morel e Stéphane Rideau, acompanhados pela ótima Élodie Bouchez, fazem valer cada cena.
39 Mal dos Trópicos
[Sud Pralad, Apichatpong Weerasthakul, 2004]
Mal dos Trópicos está acima da classificação de filme gay, mas o tailandês Apichatpong Weerasethakul parte do relacionamento entre dois jovens, o soldado Keng e o camponês Tong, para lançar uma reflexão sobre a relação do homem com tudo o que está em sua volta. O desaparecimento de Tong e a consequente caçada que o namorado empreende para procurá-lo leva o protagonista para uma experiência mística com a floresta, seus fantasmas, mitos e animais selvagens. O desejo de Keng move seus passos e o cineasta quer explicar a origem e os movimentos desse desejo. A viagem será mais interior do que qualquer coisa.
38 Infâmia
[The Children’s Hour, William Wyler, 1961]
William Wyler adaptou uma mesma peça de conteúdo gay duas vezes. Em 1936, por causa da censura, foi obrigado a transformar uma das duas personagens femininas de Infâmia num homem. Em 1961, logo depois de destroçar bilheterias e levar 11 Oscars com Ben-Hur, resolveu levar a peça pro cinema de novo. Duas professoras são acusadas por uma estudante vingativa de terem um relacionamento, o que gera um escândalo. A história é mentirosa, mas uma delas realmente é apaixonada pela outra. A homossexualidade da personagem de Shirley McLaine é bem mais clara, embora haja bastante timidez em tocar o assunto.
37 Domingo Maldito
[Sunday Bloody Sunday, John Schlesinger, 1971]
O inglês John Schlesinger tinha acabado de ganhar um dos mais ousados Oscars de melhor filme, com Perdidos na Noite, quando decidiu atravessar o Atlântico e voltar à pátria-mãe para desafiar os pudores de seus conterrâneos. Domingo Maldito mostra a história de um médico cinquentão e uma mulher recém-separada que dividem o mesmo amante na terra da rainha. Glenda Jackson e Peter Finch,ambos candidatos ao prêmio da Academia, trazem consistência para a trama, mas é ele quem mais se arrisca, estrelando um beijo gay em Murray Head, poucos anos depois do país derrubar a lei que considerava a homossexualidade como crime.
36 Minha Adorável Lavanderia
[My Beautiful Laundrette, Stephen Frears, 1985]
A Minha Adorável Lavanderia do título deste filme de Stephen Frears serve, em maior ou menor grau, como um santuário ou uma zona neutra. Nela, os personagens conseguem, por alguns instantes, escapar da Inglaterra customizada pelo espírito reacionário implantado por Margaret Thatcher durante os anos 80. Quem cuida do estabelecimento é Omar, filho de imigrantes paquistaneses que namora Johnny, um punk de cabelos descoloridos. Eles são bem resolvidos em relação a sua orientação, menos quando isso envolve a família. Por isso, aquele lugar é tão simbólico para a relação dos dois. Ela é sua casa e seu universo, um universo onde eles podem se esconder dos pais, dos racistas, dos preconceitos e de uma certa Margaret.
35 Milk
[Milk, Gus Van Sant, 2008]
O documentário Os Tempos de Harvey Milk já acompanhavam a trajetória deste que foi um dos mais importantes militantes da causa gay na história americana. O filme de Gus Van Sant dramatiza esses eventos, apoiado num conjunto impressionante de interpretações com destaque para a composição afetada de Sean Penn para o personagem principal. Biografia correta, sem muitos valores diferenciados, o poder de Milk está mesmo em radiografar o discurso e a importância de seu protagonista. Sem economizar no estereótipo, que caracterizava o homem que interpreta, Penn humaniza Milk e faz um elogio a seu comportamento.
34 Pink Narcissus
[Pink Narcissus, James Bidgood, 1971]
Visualmente falando, dificilmente você verá um filme mais gay do que Pink Narcissus. O delírio estético em 8mm do cineasta de um filme só James Bidgood, que escreveu, fotografou, fez o cenário e produziu este espétaculo kitsch e ultracolorido, uma verdadeira celebração da homossexualidade em seu entendimento mais festivo. Bidgood filmou as fantasias de um garoto de programa, que a cada cena se imagina em lugares diferentes como a Roma antiga ou no meio de uma tourada. A câmera revela detalhes do corpo do protagonista, sem qualquer pudor. O diretor, que filmou quase tudo em seu apartamento em Manhattan, não queria que o filme visse a luz do dia, assinou como “Anônimo” e sua autoria só foi revelada anos depois, nos anos 90.
33 You Are Not Alone
[Du er Ikke Alene, Ernst Johansen & Lasse Nielsen, 1978]
You Are Not Alone é um caso raro de um filme que sabe trafegar na linha tênue entre a pureza de um amor adolescente e a consciência de uma sensualidade inerente, sem parecer inocente demais ou despudorado em excesso. Os diretores confeccionam um romance colegial gay típico, mas não perdem muito tempo explicando como os personagens são discriminados por causa dele. Pelo contrário, o filme reage contra o pensamento reacionário, mas respeita a faixa etária e a formação intelectual de seus protagonistas – e o contexto de uma Suécia de pensamento mais livre no final dos anos 70. Tem um tempero que, ainda hoje, falta a muitos filmes teen gays.
32 Tatuagem
[Tatuagem, Hilton Lacerda, 2013]
A história do encontro entre Clécio e Fininha, um artista e um militar, é o ponto de partida para que Hilton Lacerda disserte sobre liberdade. A cena de sexo entre os protagonistas é belíssima: longa, coreografada como um balé, sensual e quase explícita. O cineasta explica sua revolução no texto de Irandhir Santos e em cada cena. As apresentações e os números musicais que concebe em riqueza de detalhes são transgressão pura e simples. O mais radical deles é uma “ode ao cu”, reverenciado como instrumento revolucionário máximo. Lacerda contrapõe militares e artistas, mas são esses que se assumem como soldados. Soldados da mudança.
31 Senhoritas de Uniforme
[Mädchen in Uniform, Leontine Sagan & Carl Froelich, 2013]
A história do cinema nem sempre é exata, mas Senhoritas de Uniforme teria sido o primeiro filme de que se tem notícia a ter uma trama que não apenas aborda, mas simpatiza com o lesbianidade. O filme, adaptado de uma peça de teatro, se passa num internato para moças e não tem nenhum personagem masculino. Manuela é uma órfã que se apaixona perdidamente por uma das professoras, que, na cena mais famosa do filme, lhe dá um beijo de boa noite na boca. Leontine Sagan se aproveitou de um intervalo de liberdade numa Alemanha que abraçaria o nazismo (e proibiria o filme) pouco depois e o longa correu o mundo, ganhando prêmios, fazendo história e dando ideias.
30 O Criado
[The Servant, Joseph Losey, 1963]
Joseph Losey transforma a inversão dos papeis entre um jovem rico que compra uma mansão e o mordomo que ele contrata para administrá-la numa reflexão alegórica sobre o embate de classes na Inglaterra. Mas, para além de uma fábula social, o diretor desenha um filme de forte conteúdo sexual, reprimido, reprisado, sempre confinado ao plano da sugestão. Em O Criado, Dirk Bogarde, homossexual assumido, interpreta um homem tão sedutor que transforma seu patrão em escravo sem que ele mesmo perceba. Somente quando sua noiva entra em cena é que o mordomo ganha um rival e parte para o ataque, confirmando todas as suspeitas de que o filme era não apenas sobre o jogo de poder.
29 Festim Diabólico
[Rope, Alfred Hitchcock, 1948]
A homossexualidade nunca esteve tão evidente nos filmes de Alfred Hitchcock como em Festim Diabólico, sempre na base da sugestão. Brandon e Phillip matam um estudante pelo que parece ser um simples exercício de maldade, mas o que ele fazem a seguir gera interpretações ainda mais sombrias. Os dois colocam o corpo num baú que será utilizado como mesa numa festa. O ato dos amantes secretos poderia muito bem ser uma vingança contra o mundo que os aprisiona no anonimato. Uma provocação, uma pequena e mórbida revolução, um grito desesperado contra um status quo. Hitchcock pode ter sido um dos primeiros a levar o gay vilão para as telas, sem histrionismos e dentro de uma obra-prima.
28 Não é o Homossexual que é Perverso, Mas a Situação Em Que Ele Vive
[Nicht der Homosexuelle ist pervers, sondern die Situation, in der er lebt, Rosa von Praunheim, 1971]
O alemão Rosa von Praunheim talvez seja o maior militante de um cinema homossexual. Em quase 50 anos, entre curtas, longas, ficções e documentários, realizou mais de 80 filmes. Este aqui, seu segundo longa, é de uma espécie difícil de identificar. Um doc em que todas as cenas são encenadas. Às vezes, atores dublam os diálogos de outros atores que aparecem na tela. Não existe um diálogo filmado de maneira direta. Em outras, narradores analisam, traduzem e explicam contextos das situações que estão sendo exibidas, todas explorando o cotidiano do alemão homossexual no início dos anos 70 em várias esferas, cenários e movimentos. Em alguns momentos, a tendência a ser kitsch e a tentativa de Praunheim de justificar procedimentos parece até preconceituosa e sua visão de futuro determinista e pessimista, mas seu esforço para diagnosticar os dilemas do homem gay, naquele contexto, é, no mínimo, espetacular.
27 Vida Nua
[The Naked Civil Servant, Jack Gold, 1965]
Trinta anos antes de Milk, Jack Gold já dirigia uma cinebiografia sobre um militante homossexual. Vida Nua conta a história de Quentin Crisp, um pioneiro da causa gay na Inglaterra, que, em plenos anos trinta, já circulava com maquiagem pelas ruas de Londres. Gold acerta ao emprestar ao filme, uma produção feita para a TV, o tom sarcástico de seu homenageado, que ganhou um intérprete brilhante na figura andrógina de John Hurt. O ator reprisaria o papel de Crisp 34 anos depois em Um Inglês em Nova York, uma continuação da trajetória do personagem bem menos bem resolvida que o filme original.
26 Tangerine
[Tangerine, Sean Baker, 2015]
Tangerina é como se fosse um filme de John Waters sem a escatologia. Para se aproximar das personagens, Sean Baker filma tudo com um iphone e mantém um estilo documental quase amador para filmar Sin-Dee e Alexandra, fazendo com que o espectador fique bem próximo delas e de sua realidade. Baker não tem pudores em assumir tiques, expressões, gírias e um modo de ver o mundo das transexuais que trabalham nas ruas de Los Angeles, o que deixa tudo muito mais verdadeiro por mais fake que as interpretações ou o fiapo de roteiro sejam. O filme acompanha uma trans que acaba de sair da cadeira e descobre que seu namorado está pegando outra. É aí que o filme lembra John Waters que tinha aquela capacidade esplêndida de tornar tudo tão baixo e tão vivo, elegendo figuras à margem como protagonistas e nunca menosprezando suas questões que podem parecer mundanas ou banais demais para a família tradicional. Com seu namoro como este universo invisível, Baker faz um filme político baixo, mas de primeira grandeza. Tangerina é um sopro de vida no cinema indie americano que anda cada vez mais industrial.
25 Sebastiane
[Sebastiane, Derek Jarman & , 1976]
25 Blue
[Blue, Derek Jarman, 1993]
Sebastiane é a estreia e Blue, o último dos filmes de Derek Jarman. Dois trabalhos imensamente significativos para o imaginário do cinema LGBT, mas por razões opostas. Enquanto o primeiro negocia com a tendência do cinema marginal (à margem, amigos), dos anos 70, uma tendência de ser explícito em mostrar corpos e nus e trabalhar sempre numa espécie de excesso, como em Pink Narcissus, o segundo joga esta ânsia de mostrar pela ânsia de ser ouvido. Já debilitado pela AIDS, que o levaria no ano seguinte, Jarman faz um filme sobre suas memórias, sua percepção da doença, a perda da visão e de seus amigos com uma tela azul imutável que serve de moldura para narrações, poesias, músicas e efeitos sonoros. Blue, como o próprio título indica, mostra uma homem melancólico, que mal consegue enxergar, mas que, mesmo assim, olha pro passado para tentar enxergar como serão seus últimos dias.
24 Os Rapazes da Banda
[The Boys in the Band, William Friedkin, 1970]
24 Parceiros da Noite
[Cruising, William Friedkin, 1980]
“Eu espero que haja homossexuais felizes, mas eles apenas não estão no meu filme”, afirmava William Friedkin na época do lançamento de Os Rapazes da Banda, que o diretor adaptou da peça de Mart Crowley, quando fazer um filme estrelado por personagens gays ainda era tabu. Friedkin acompanha a reunião de um grupo de homossexuais que se reúne num apartamento para o aniversário de um deles. O presente mais ousado, um garoto de programa, desperta uma série de discussões em que o comportamento gay era colocado em xeque. O pioneirismo do filme esbarra algumas vezes em soluções muito teatrais ou demasiadamente moralistas sobre o assunto, mas como obra, o filme é bastante ousado. Dez anos depois, Friedkin invade o mundo dos clubes de pegação leather com Parceiros da Noite e ainda arrasta Al Pacino pra lá. Embora exista um clima implícito de julgamento no filme, o cineasta nunca realmente se posiciona sobre o comportamento dos personagens e procura fazer um retrato próximo dos ambientes frequentados pelos protagonista, um policial encoberto que procura um assassino de homossexuais em clubes gays. A construção é de gênero, no caso, a do filme de suspense, mas Friedkin frequentemente coloca o personagem de Pacino em arapucas que questionam sua própria percepção das coisas.
23 O Pecado de Todos Nós
[Reflections in a Golden Eye, John Huston, 1967]
O ano era 1967 e Hollywood, embora tivesse seus pioneiros, ainda costumava arrastar a homossexualidade para as entrelinhas. Foi então que John Huston, Marlon Brando e Elizabeth Taylor, todos já amplamente reconhecidos e oscarizados, resolveram se unir num filme perturbador. Exemplo de virilidade na tela grande, Brando, numa de suas melhores performances, interpreta um oficial que subitamente se vê atraído por um soldado e desmorona em frente às câmeras. Sua mulher, que percebe o que está acontecendo, enlouquece tentando seduzi-lo mais uma vez. Como o livro em que foi baseado, O Pecado de Todos Nós apunhalou a América em suas maiores certezas.
22 Almas Gêmeas
[Heavenly Creatures, Peter Jackson, 1994]
O filme mais complexo de Peter Jackson não tem hobbits ou elfos, mas tem Orson Welles em O Terceiro Homem, na mesma fuga incessante que as protagonistas de Almas Gêmeas, Juliet e Pauline. A primeira, de uma intensidade quase insuportável, acaba de se mudar da Inglaterra para a Nova Zelândia, onde conhece a outra, que vive isolada e sem amigos. As duas se aproximam, se apaixonam e ficam insperáveis, precisando se refugiar dos problemas mundanos e da perseguição dos pais na ficção. Kate Winslet e Melanie Lynsky, ambas estreando no cinema, estão nos papéis de suas vidas.
21 Hedwig: Rock, Amor e Traição
[Hedwig and the Angry Inch, John Cameron Mitchell, 2001]
Descendente direto das óperas rock, Hedwig – Rock, Amor e Traição, filme de estréia de John Cameron Mitchell, tem uma consistência impressionante. Hansel muda de sexo para que o namorado o leve embora da Alemanha para os Estados Unidos, onde ele sonha em se tornar um astro do rock, Hedwig. Adaptando sua própria peça, o cineasta sabe dar o tom exato a seu protagonista, tornando-o complexo e encantador. Ao mesmo tempo em que aborda temas sérios como o êxodo, o exercício da liberdade e a transexualidade, o longa reproduz a fórmula de filme de rock, com humor, sarcasmo e trilha sonora excepcional, com destaque para “Wig in a Box”.
20 Diferente dos Outros
[Anders als die Andern, Richard Oswald, 1930]
Eis um caso em que o cinema tenta escrever a história, lançar discussões, ser pioneiro em temas espinhosos. Diferente dos Outros é um filme explicitamente homossexual. O diretor Richard Oswald, em parceria com o sexólogo Magnus Hirschfeld, tentou fazer um trabalho que ajudasse a combater a discriminação contra os gays, humanizando seus personagens, relativizando seus comportamentos, denunciando delatores e tentando trazer explicações científicas, as que se tinha à época, para embasar sua ideia de igualidade. Fez isso em 1919, numa Alemanha onde ser homossexual era crime, previsto em lei, e quando muitos homens eram chantageados por pessoas que ameaçavam delatá-las.
19 Bom Trabalho
[Beau Travail, Claire Denis, 1999]
É bem difícil fazer poesia no cinema. Claire Denis conseguiu em Bom Trabalho. De um lado, um texto que só aparece quando é extremamente necessário e serve para pontuar o inspiradíssimo trabalho de composição visual e sonora desta adaptação de Billy Budd, de Herman Melville. Cada plano e cada cena depois de cada plano estão impregnadas de leveza ao mesmo tempo em que carregam um simbolismo fortíssimo. A diretora consegue contar uma história da Legião Estrangeira sem o peso do clichê da guerra, como um balé delicado, mas duro. É impressionante como o filme nunca perde o equilíbrio entre o masculino – o elenco principal é formado apenas por homens – e o feminino, presente nos menores detalhes da fotografia. A maneira como Denis e Agnès Godard filmam os corpos masculinos explicita a leitura homossexual para as relações entre os personagens, que era penas sugerida por Melville. Como imaginar gostar tanto de um filme que começa com Tarkin e termina com Corona?
18 Minha Vida em Cor-de-Rosa
[Ma Vie en Rose, Alain Berliner, 1997]
Ludovic é um garoto de 7 anos que tem apenas uma certeza na vida, a de que estaria prestes a se transformar numa menina. Diante de um destino tão empolgante quanto inevitável, Ludo não se priva de testar os modelitos que vai usar nessa nova fase para o choque dos vizinhos e o desespero dos pais. Conto singelo sobre o despertar da identidade sexual, Minha Vida em Cor-de-Rosa dá um recado importante com a ajuda de uma criança: o surgimento da transexualidade pode ser algo bem mais natural do que se imagina. Alain Berliner protege seu protagonista. Quando Ludo está cercado pela intolerância, o diretor o manda para o Mundo da Pam, um lugar mágico em que nosso pequeno herói, vivido pelo incrível George DuFresne, pode ser quem ele quiser.
17 As Lágrimas Amargas de Petra von Kant
[Die Bitteren Tränen der Petra von Kant, Rainer Werner Fassbinder, 1972]
17 O Direito do Mais Forte à Liberdade
[Faustrecht der Freiheit, Rainer Werner Fassbinder, 1975]
Rainer Werner Fassbinder é geralmente lembrado por sua homossexualidade, mas seu imenso talento nos deixou uma obra muito mais sobre a alma humana do que sobre uma consciência de gênero. Petra von Kant e O Direito do Mais Forte à Liberdade, embora tenham protagonistas homossexuais, versam sobre o jogo de poder e a dependência que pode vir de um envolvimento amoroso. Comum aos dois filmes, um ambiente completamente simpático à homossexualidade, em que a condição dos personagens raramente é questionada. Petra se aproveita do amor de Marlene até que Karin aparece para reverter as coisas. Já Franz aceita tudo o que vem do oportunista falido Eugen e terá que aguentar as consequências disso. Fassbinder mergulha num mundo puramente homossexual para mostrar como as relações de poder podem macular as relações humanas tal qual acontece em contatos heterossexuais. Nos dois filmes, o cineasta parece dizer que a natureza humana pode ser perversa mesmo entre iguais.
16 Línguas Desatadas
[Tongues Untied, Marlon Riggs, 1989]
Entre o documentário e poema libertário, Marlon Riggs fez um belíssimo retrato da luta do homossexual negro e do duplo preconceito que ele enfrenta por sua etnia e por sua natureza. Línguas Desatadas, que ganhou o Teddy, prêmio destinado para filmes de temática LGBT no Festival de Berlim, eleva o tom político, mas conseguiu encontrar uma forma narrativa que funciona tanto no texto que pontua com precisão as imagens de arquivo e as encenações, como na própria estrutura do filme, que desafia padrões convencionais de documentários, faz um excelente trabalho sonoro, quase musical, e transforma a carga panfletária em arte combativa.
15 Um Estranho no Lago
[L’Inconnu du Lac, Alain Guiraudie, 2013]
Alain Guiraudie consegue, a partir de um exercício de repetição, fazer uma das mais intensas investigações do desejo sexual que o cinema recente já produziu. Em Um Estranho no Lago, estamos diante de um filme de cenário único, as margens de um lago em alguma parte do interior da França, utilizadas pela população gay da região para fazer pegação. Guiraudie nos confina com aqueles homens naquela pequena faixa de terra, nas pedras e na mata ao redor. A cena final radicaliza a discussão sobre até onde vai o desejo (e talvez o amor). Ela não só valida todo o filme, como explica as motivações daqueles homens: as trilhas dentro das matas podem ser perigosas, mas são tudo o que eles têm.
14 Um Dia de Cão
[Dog Day Afternoon, Sidney Lumet, 1975]
Sonny é um macho de verdade, mas sua aparência viril e seu comportamento masculino escondem um homem apaixonado… por outro homem. Uma relação tão forte que motiva um ato desesperado: assaltar um banco para pagar a cirurgia de mudança de sexo do namorado. A homossexualidade do protagonista é o gatilho para Um Dia de Cão, mas o filme não se limita a ela. Sidney Lumet dirige a história, inspirada num caso real, com tanta naturalidade que não demora muito para que o espectador vire um cúmplice do personagem interpretado por um espetacular Al Pacino, que já era um astro que nunca dizia não há um desafio.
13 Teorema
[Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968]
A beleza quase andrógina de Terence Stamp sempre colocou a sensualidade a favor de seus papéis. Em Teorema, o filme “mais limpo” de um certo Pier Paolo Pasolini, o ator está no auge. Da beleza, do talento, da sedução. O homem misterioso vivido pelo ator seduz uma família inteira: da patroa a empregada, do filho à filha, incluindo o pai. O cineasta italiano iguala homens e mulheres, jovens e adultos, ao mesmo plano, à mesma condição social e carnal. Todos são vítimas indefesas de uma figura que exala virilidade, mas que trata cada um deles em suas carências para seduzi-los e desaparecer. O filme seria tanto uma crítica à burguesia e ao consumismo quanto um manifesto de Pasolini pela liberdade sexual.
12 E Agora? Lembra-me
[E Agora? Lembra-me, Joaquim Pinto, 2013]
O cineasta português Joaquim Pinto foi muito corajoso ao expor neste belíssimo documentário os últimos 20 anos de sua vida, a convivência com a AIDS, sua relação com seu parceiro de longa data, Nuno Leonel, e com seus quatro cachorros. “Anotava no calendário os dias bons e ruins. Parei quando percebi que a maioria deles eram ruins”, decreta o diretor, que, apesar disto, não impõe ao filme um tom pessimista, mas ultrarrealista. Pinto faz de E Agora? Lembra-me um caderno de anotações sobre seu dia-a-dia e isso inclui testar novos medicamentos, entrar em embates, viver sua dor, mas apesar de tudo isso, o filme parece muito mais um manifesto do diretor sobre estar vivo do que um lamento pelo peso que carrega há tantos anos.
11 Morte em Veneza
[Morte a Venezia, Luchino Visconti, 1971]
Tadzio é a personificação do belo e, em linhas gerais, Morte em Veneza, seja o livro de Thomas Mann, seja o filme de Luchino Visconti, é uma obra sobre o torpor da beleza, mas seria meio inocente ignorar o fortíssimo conteúdo gay na história do compositor que desenvolve uma compulsão obsessiva por um adolescente. Embora essa atração seja platônica e esteja além do sentimento carnal, a homossexualidade de Visconti, que a explorou em boa parte de seus filmes, e de Dirk Bogarde, escolhido para ser o protagonista deste aqui, são indícios de que o diretor tinha algo mais em mente. Não que o cineasta quisesse trazer a discussão dos temas do autor para planos mais carnais, talvez Visconti estivesse interessado em elevar o nível de ficção de gênero a que o homossexual geralmente é condenado.
10 Lado Selvagem
[Wild Side, Sébastien Lifshitz, 2004]
Lado Selvagem é um filme meio sem par porque Sébastien Lifshitz vai muito além do retrato do “submundo” das travestis e da prostituição, encenado com respeito e sensibilidade, ou da discussão sobre os movimentos desse universo, que se repete em looping filme após filme. Ao diretor interessa mesmo é apresentar e dar relevo à família fora dos padrões formada pela transexual Stéphanie e por seus dois namorados, dedicando longos minutos a estabelecer os sentimentos que cada um tem pelo outro. É esta família que vai, unida, para o norte da França para cuidar da mãe de Stéphanie, que está prestes a morrer. Sem panfletagem, o longa não se intimida em lançar suas transgressões ao mesmo tempo em que faz um ode ao amor.
9 Garotos de Programa
[My Own Private Idaho, Gus Van Sant, 1991]
Mike e Scott circulam pelas ruas de Portland e, entre golpes e aventuras em que vendem seus corpos, arrumam sustento e alimentam o sonho de partir numa jornada pelas estrada da América em busca de um lugar que possam transformar num lar. Em um de seus melhores filmes, Gus Van Sant misturou elementos de Henrique IV, de Shakespeare, e depoimentos de prostitutos reais para costurar uma história sobre memória e pertencimento. River Phoenix tem aqui a interpretação de sua vida, emprestando fragilidade e vigor a seu Mike, e Keanu Reeves também chama atenção num filme que não busca respostas rápidas até porque as questões que ele lança são complexas demais.
8 A Lei do Desejo
[La Ley del Deseo, Pedro Almodóvar, 1997]
8 Tudo Sobre Minha Mãe
[Todo Sobre Mi Madre, Pedro Almodóvar, 1999]
Dos filmes da primeira fase, a mais crua, da carreira de Pedro Almodóvar, A Lei do Desejo talvez seja sua obra mais poderosa, um ensaio sobre amor e obsessão que assume a forma de thriller. A homossexualidade, presente em quase todos seus filmes de maneira periférica, passa para o centro da trama, que acompanha o envolvimento de um cineasta com um homem mais jovem. O espanhol ainda estava em mutação, mas embora antecipasse houvesse algo do refinamento de seus filmes da segunda metade dos anos 90, este ainda é um filme bruto, sem pudor em mostrar cenas de sexo gay bem próximas do explícito. Carmen Maura abre uma narrativa em paralelo ao interpretar um transexual recém-operado. Já dos filmes de sua época de ouro, Tudo Sobre Minha Mãe é o mais universal, generoso e bonito. É nesta pérola que ele atinge a essência do melodrama, algo que parecia buscar havia anos. Homenageia Sirk, mas com sua alma latina que faz com que a mãe que acabou de perder o filho gay abraçar a transexual vivida por Antonia San Juan com o carinho de quem reencontrou um ente querido.
7 Felizes Juntos
[Chun Gwong Cha Sit, Wong Kar-Wai, 1997]
A embalagem estética dos filmes de Wong Kar-Wai traduz muito do estado de espírito de seus personagens, além de celebrar a relação deles com o lugar onde vivem. Felizes Juntos é um filme sobre amor (ou o fim dele), rodado por um chinês na Argentina, por isso, a plástica visual e sonora do longa é uma das mais particulares na carreira do diretor. As cenas de sexo são filmadas com um imenso interesse no balé dos corpos, como se nesses momentos os personagens estivessem num outro plano, quase hipotético, numa espécie de plenitude do exercício da beleza. Em contraponto, o tango carrega a dor para todos os lados lembrando ao espectador da iminência da finitude.
6 Priscilla, a Rainha do Deserto
[Priscilla, Stephen Elliott, 1994]
É meio banal falar de filme definitivo, mas as drag queens ganharam algo bem parecido com isso em Priscilla, a Rainha do Deserto, um road movie gay em que o trio de protagonistas atravessa o deserto para fazer uma apresentação musical e se aventura numa jornada onde cada uma revê suas escolhas. Travestido de comédia escrachada, área em que é extremamente bem resolvido, o longa de Stephan Elliott oferece um olhar extremamente maduro sobre identidade sexual, algo bastante raro, sobretudo quando casado com o humor. Terence Stamp, Hugo Weaving e Guy Pearce desenvolvem suas personagens com sensibilidade, domando os estereótipos e se tornando complementares uns aos outros.
5 Paris is Burning
[Paris is Burning, Jennie Livingston, 1990]
Paris is Burning é um documento histórico. Jennie Livingston captura o movimento vivo de uma cultura que já existia havia décadas no underground novaiorquino, o mundo dos concursos e o florescer do universo drag queen. A diretora mantém uma relação orgânica com seus entrevistados, que parecem muito à vontade em frente à câmera. Na verdade, a câmera parece muito mais um microfone disponível para que cada um solte seus demônios ou simplesmente conte sua história. As personagens são fascinantes: reais e fakes ao mesmo tempo, cheias de vida durante toda a duração do filme. Quem assiste RuPaul’s Drag Race vai descobrir de onde veio todo o arsenal de vocabulário, expressões e conceitos utilizados no reality show. Fundamental para entender e, mais ainda, para respeitar todo esse universo.
4 Delicada Atração
[Beautiful Thing, Hettie Mcdonald, 1996]
Hettie Mcdonald estreou no cinema com Delicada Atração para depois dedicar uma carreira inteira para a televisão. Sua única experiência para a tela grande é uma pérola sobre a descoberta do amor entre dois meninos, adolescentes ingleses que parecem saídos dos subúrbios dos filmes de Mike Leigh. A aproximação entre os dois é gradual e lenta, e a diretora administrada com uma delicadeza completamente espontânea. Glen Berry e Scott Neal descobrem seus personagens junto com o espectador. Estão ótimos, mas a mãe vivida por uma maravilhosa Linda Henry e a jovem viciada em Mama Cass, papel do furacão Tameka Empsen, roubam as cenas em que aparecem, menos a última, uma dos mais belos finais de filme dos últimos 20 anos .
3 Carol
[Carol, Todd Haynes, 2015]
Todd Haynes já abordou o universo homossexual das mais diferentes maneiras. Criou uma alegoria da AIDS em A Salvo, mostrou uma mulher que descobre que o marido tem um caso gay em Longe do Paraíso, fez um filme inteiro com bonecas barbie e mais dois de seus títulos mais explícitos na lista complementar deste post. Mas a homossexualidade nunca esteve tão no centro de uma de suas tramas como em Carol, embora ele mesmo diga que não quis fazer um filme gay. Ao mostrar o romance entre a socialite de Cate Blanchett e a working girl de Rooney Mara, Haynes faz um filme belo e duro, cujas cores remetem ao cinema de Douglas Sirk, mas cada lindísimo plano garante uma consciência inédita de que afeto e dor andaram juntos por muito tempo.
2 Meu Passado me Condena
[Victim, Basil Dearden, 1961]
Dirk Bogarde é definitivamente o grande herói gay do cinema. Em Meu Passado me Condena, ele aceitou o papel, recusado por vários atores, do advogado de sucesso, casado, que resolve investigar as chantagens feitas a homossexuais na Inglaterra, onde manter relações com alguém do mesmo sexo era crime. O conflito vem do fato de que ele mesmo era homossexual. Esta, por sinal, foi a primeira vez que um filme em língua inglesa utiliza a palavra. Basil Dearden construiu o filme como um thriller psicológico, tenso, que culmina na fortíssima cena do outing do protagonista para a esposa. Seis anos depois do filme a homossexualidade foi finalmente descriminalizada na Inglaterra.
1 O Segredo de Brokeback Mountain
[Brokeback Mountain, Ang Lee, 2005]
Nenhum filme com temática homossexual conseguiu mais do que O Segredo de Brokeback Mountain. E isso aconteceu porque, embora pareça ser um filme sobre a história de amor entre dois caubóis, esta poderosa obra de Ang Lee é a história de um amor proibido, condenado ao segredo, ao microverso, à miniatura. Mas o filme retrata muito mais uma luta íntima contra as próprias limitações do que uma batalha contra fronteiras impostas pelos outros. Nesse sentido, é muito inteligente a contraposição das personagens, que mesmo diferentes (e é essa diferença que justifica todo o filme) não se encaixam nas figuras estereotipadas tão caras a histórias afins. A trilha sonora é um metáfora perfeita do filme. A melodia criada por Gustavo Santaolalla é interrompida sempre que alcança seus momentos mais bonitos. Os cortes são abruptos, secos, como se fosse proibido continuar a fruir a música.
considerações finais
É importante notar que não havia espaço para todos os filmes realmente relevantes sobre a temática ao longo da história do cinema e que os títulos citados nesta lista mudaram várias vezes a cada nova descoberta ou revisão. Procurei evitar alguns títulos muito óbvios quando achei que eles não ofereciam algo mais do que o pioneirismo ou a pertinência. A ideia central era fazer um panorama de filmes gays que eu considero importantes e representam aspectos e tipos diferentes no universo homossexual e cinematografias que mostrassem o tratamento para o assunto em países ao redor do mundo.
Filmes que continham personagens gays, mas cujo tema era periférico nessas obras terminaram sendo eliminados. Há diretores com mais de um filme quando eu julguei que eles eram importantes e diferentes entre si. Procurei excluir longas que se escoram em estereótipos, mesmo que se tratasse de bons filmes, com raras exceções. Lista é sempre questionável e parcial e aqui não existe nenhuma intenção em ser definitivo. Utilizem os comentários e exerçam o papel que cabe a vocês: digam o que faltou. Aguardo suas listinhas. E só um lembrete: discordando ou não dos filmes desta lista, recomendo todos eles. Assisti-los seria importante para entender como o cinema retratou e procurou entender o homossexual em mais de um século de vida.
ja assistiu noordzee?
Também gosto muito da franquia Eating Out, eles abordam de um jeito engraçado a temática e estou louco para vê Mãe Só Há Uma.
Dois filmes que eu gosto muito, me marcaram e não entraram na lista são Do Começo ao Fim e Praia do Futuro.
Eu realmente detesto Do Começo ao Fim.
lista incrível.
Se eu puder acrescentar um: o holandês “For A Lost Soldier” (1992)
Um menino holandês de doze anos de idade tem uma relação amorosa com um soldado canadense durante a 2ª Guerra Mundial. Baseado no livro autobiográfico de Rudi van Dantzig.
(tecnicamente é meio brega, mas a coragem de contar essa história é uma raridade)
Anotado, Joaquim. Vou procurar.
Chico, você já assistiu L’homme de sa vie? Eu acho muito bom.
Ainda não, vou procurar.