Os Campos Voltarão
[Torneranno i Prati, Ermanno Olmi, 2014]
Um soldado canta do alto de uma trincheira. Sua voz poderosa, que cruza os campos num raro momento de paz no front, ganha elogios de seus inimigos, que pedem mais uma. É assim, com este absurdo de guerra, que Ermanno Olmi inicia seu novo filme, que fala sobre o absurdo da guerra. Entre longas e curtas, este é o 84º título da carreira de um cineasta de 84 anos: são apenas 80 minutos que valem muito mais do que os últimos dez anos de filmes sobre conflitos mundiais. A guerra de Os Campos Voltarão é a primeira das grandes, mas que o diretor apresenta de dentro para fora. Praticamente todas as cenas do filme acontecem dentro do bunker em que a tropa italiana tenta resistir ao inimigo. A guerra em si se resume a explosões perto de onde estão os soldados e “fogos de artifício” no céu. Os diálogos são sobre a guerra, mas são mais ainda sobre a vida, o medo, a incerteza. O humano vem antes da política para Olmi, que desbota as cores do longa até bem perto do preto-e-branco e envolve seu filme numa trilha sonora improvável composta pelo jazzista Paolo Fresu. A paleta pálida e a música estranha ajudam a encenação algo teatral a transportar aquela história para uma espécie de dimensão diferente, reforçando o lado bizarro do conflito com uma poesia triste e dura, estranha e de beleza esquisita. A batalha dos soldados de Olmi acontece mais dentro deles do que do lado de fora. É uma batalha contra um inimigo invisível, um fantasmas onipresente e sem forma definida, o horror da guerra.
O Rei da Comédia
[The King of Comedy, Martin Scorsese, 1982]
O Rei da Comédia é uma fábula do absurdo. E, por mais absurdo que seja, permanece completamente atual em seu retrato do culto à celebridade. Há mais de trinta anos, Martin Scorsese se reuniu mais uma vez com seu favorito Robert De Niro para investigar o desejo pela exposição na figura de Rupert Pupkin, um homem cujo sonho é se tornar um comediante de stand up da televisão. Para falar de humor, resgatou uma das maiores lendas do cinema, Jerry Lewis, que havia tempos não fazia nada realmente relevante. Jerry aqui interpreta a inspiração, o objetivo e o alvo de Pupkin, Jery Langford, apresentador de um talk show de sucesso na TV. O encontro inusitado das duas personagens mexe profundamente com Pupkin, cuja mitomania faz com que ele transite entre a fantasia da conquista e a realidade para onde sua mãe o chama no meio de cada uma de suas viagens. Para ele, Langford é mais do que uma passagem para a fama e o reconhecimento, é a chance de ver seu sonho realizado. O roteiro de Paul D. Zimmerman, um dos três que ele escreveu na vida, atravessa os limites entre a comédia proposta desde a primeira cena e o estudo sério da personagem com muito jogo de cintura, sem perder a fábula, sem abrir mão da melancolia. De Niro tem uma coleção de interpretações maravilhosas, mas seu Rupert Pupkin oferece uma vitalidade até então nova para seu repertório. Ele defende a farsa de Pupkin com muita verdade, cheio de nuances, encontrando pertinência para cada transtorno do protagonista. A seriedade de Jerry Lewis também impressiona e o contraste com a personagem deliciosamente alucinada de Sandra Bernhard cria algumas cenas excelentes perto do final. O Rei da Comédia nunca foi reconhecido como a obra-prima da sutileza que é.
Sob Nuvens Elétricas
[Pod Elektricheskimi Oblakami, Aleksey German Jr., 2015]
Um prédio moderno, de curvas ousadas, mas abandonado no esqueleto é a imagem mais recorrente de Sob Nuvens Elétricas. Estamos na Rússia, apenas dois anos à frente, em 2017, centenário da revolução que levou Lênin ao poder. E sob os ecos desta história tão massacrante, que eliminou o humano em prol do conjunto, experenciamos a visão de futuro de Aleksey German Jr. Um futuro tão fracassado quanto a experiência socialista. Em sua pálida distopia, o que seduz não são as personagens, que parecem tão perdidas na paisagem como o protagonista do primeiro dos sete capítulos do filme, um imigrante quirguiz que vaga por ruínas, pelo gelo e pelas ruas da cidade com um rádio quebrado. A sedução também não vem da história, que German libera a conta-gotas, em diálogos codificados, nos intervalos das imagens de cores esmaecidas, de quadros que materializam a solidão, a desesperança, o incompreensível. É na plástica que German traduz seu pessimismo discreto com o que a Rússia construiu para si, é na estética congelante que mora seu grito de horror em relação ao futuro de seu país, é num prédio lindíssimo, imponente e pela metade que encontra a imagem perfeita para cristalizar a catástrofe de uma promessa.
O Evento
[Sobytie, Sergei Loznitsa, 2015]
De seus vinte títulos como diretor, dezessete filmes do bielorrusso Sergei Loznitsa são documentários. O Evento, seu longa mais recente, é uma costura de imagens em found footage coletadas de diversos cineastas independentes sobre os eventos em Leningrado, em 1991, que levaram à dissolução da União Soviética. As imagens da multidão na praça central da cidade são não apenas a opção formal, mas a linha narrativa do filme. Elas são sobrepostas por entrevistas, depoimentos, pronunciamentos de rádio e TV e discursos, estes os únicos que não aparecem em off, para dar corpo e volume para seu retrato do movimento contra-URSS, como consequência de um desejo coletivo da população, que pergunta porque a televisão só exibe o Balé Bolshoi e que quer saber se Mikhail Gorbachev está realmente morto, como dizem os boatos. O preto-e-branco onipresente em todo o filme oficializa o tom de documento histórico, além de dar peso e textura ao discurso, que Loznitsa deixa a cargo do espectador, mas que parece muito claro quando o cineasta nos afirma que aquele movimento nasce e cresce nas ruas.
A Volta ½
[Elämältä Kaiken Sain, Mika Kaurismaki, 2015]
Depois da bela surpresa de A Jovem Rainha, Mika Kaurismaki enterra a boa impressão em A Volta, comédia dramática com ecos de filme de suspense, envolta numa onda de clichês e reviravoltas rocambolescas que nunca diz exatamente a que veio. Baseado no livro de Petri Karra, o filme tenta encontrar um equilíbrio entre o lugar comum da frieza do comportamento nórdico e um certo calor latino provavelmente herdado da passagem do cineasta pelo Brasil, onde morou por anos. Ele tenta capturar o drama familiar da mulher que resolve se mudar para a casa do pai no interior junto com o namorado e a filha dele, mas nunca desenvolve as distância entre as personagens de maneira realmente eficiente, e aposta num romance em que parece não acreditar, inserindo uma subtrama policial que parece cair do céu para dar algum movimento ao material. Todas as personagens têm algum grau de estereotipia, principalmente a adolescente gótica e o velho rabugento. As belas imagens à beira de um lago não salvam esse novelão da nulidade.