Na discussão sobre gênero, o limite sempre importou mais do que as condições masculina ou feminina. Mesmo agora, quando o debate sobre transexualidade ganha mais espaço e é mais aberto, o foco parece se fixar mais na transição, no que separa, do que na condição, no que se é, e o novo aceitável — e confortável — é que a pessoa se acomode no gênero com o qual se identifica e que o limite volte a se colocar. Fim de papo.
“Aviva”, nono e o mais surpreendente longa-metragem de Boaz Yakin, propõe quebrar estes limites entre homem e mulher, macho e fêmea, mas muda o que parece ser a chave pela qual se costuma enxergar a questão. Em vez de masculino e feminino ocuparem o mesmo corpo e se nossas personas de gênero vivessem em corpos de gêneros diferentes? Sendo — e não sendo — uma pessoa só.
Parece complexo, mas Yakin escolhe tocar a narrativa com leveza e o debate acontece espontaneamente. O casal de protagonistas, Eden e Aviva, é interpretado por dois homens e duas mulheres. Cada personagem tem um corpo masculino e um feminino, que se revezam a cada cena, como as duas Conchitas de “Esse Obscuro Objeto do Desejo”. Onde termina o ele e começa a ela? O que determina os rótulos que impomos para nós mesmos?
Yakin, sinceramente, parece não querer respostas, mas lançar provocações. Desde uma poderosa estreia em 1994 — com “Fresh”, sobre um garoto cercado pelo mundo do crime — o cineasta não lançava um trabalho tão provocador. Aliás, nem mesmo seu primeiro filme é tão ousado. Sua carreira havia migrado para um cinema comercialíssimo, com filmes de esporte e animais heróis. Felizmente, esse se libertou desse limbo.
O mais interessante neste novo filme é que, por mais que lance questões complexas, o diretor não se contenta com elas. Emoldura o filme com diversas sequências de dança — os personagens são bailarinos — e até quebra a quarta parede para falar sobre isso. E quando “Aviva” parece estabelecer sua discussão, ele adiciona outras camadas: se somos um e somos outro, podemos ser um e outro ao mesmo tempo? Se somos hoje, podemos ser ontem hoje também?
“Aviva” pulveriza os limites de gênero e de identidade e Boaz Yakin nos permite interpretar como quisermos essa experiência.
Aviva ★★★½
idem, Boaz Yakin, 2020