DOA A QUEM DOER

Mel Gibson conta os momentos finais da história de Jesus para falar de intolerância. Logo quem…

Kyle Rayner é o Lanterna Verde da Terra. Ou pelo menos era. Depois de uma crise pessoal, ele resolveu se afastar da sua missão de herói. A decisão não tem apenas um motivo, mas vários. O ápice aconteceu quando um amigo de infância de Kyle foi espancado até o coma porque era gay. O herói não conseguiu entender as razões para aquilo. Como alguém não aceita quem age, pensa ou é diferente apenas porque esta pessoa age, pensa ou é diferente? De que adiantavam todos aqueles poderes que tinha se não poderia mudar isso, se não poderia ajudar um amigo? Kyle pensou em mudar o mundo, voltar no tempo e evitar a tragédia. Mas de que adiantaria fazer isso se as pessoas continuariam a pensar assim? Então, ele decidiu se afastar.

Mel Gibson nunca foi exatamente um herói, apesar de já ter interpretado alguns. Ele conhece bastante sobre a intolerância. Gibson é um cristão, como deve ser a maior parte dos leitores deste blogue, e a figura central da sua religião, o messias, o filho do deus em Gibson acredita foi um dos maiores alvos da intolerância na história do planeta. Jesus Cristo foi perseguido, preso, torturado e crucificado até sua morte. Uma história de sangue e violência que não apenas mitificou sua imagem, como criou uma das mais difundidas religiões do mundo. Uma crença tão forte que um império inteiro, o próprio império nas mãos do qual Jesus morreu, sucumbiu perante ela. Durante dois mil anos, o Cristianismo seguiu, incólume, sua carreira de sucesso até que passou a ser atacado pelos excessos que sua unanimidade gerou.

Gibson, um homem ortodoxo, de crenças firmes, resolveu então contar a história do criador de sua religião, reforçando o quanto quem é diferente incomoda. A Paixão de Cristo, não é mais novidade para ninguém, narra os acontecimentos das últimas doze horas da vida de Jesus, um recorte interessante que funciona bem para quem quer dissertar sobre a intolerância religiosa. E é inegável que Jesus foi alvo dela. Me parece bastante nobre querer defender suas crenças, perpetuar a história em que se acredita, mas os fins nem sempre justificam os meios. Por causa de seu filme, Mel Gibson foi chamado de anti-semita, já que os sacerdotes judeus, são ressaltados como maiores responsáveis pela morte do protagonista da história. No entanto, esse não parece ser o maior questionamento a se fazer sobre o filme. Na ânsia de mostrar o quão intolerantes foram judeus e romanos com Jesus, Gibson se mostra intolerante contra absolutamente todos que não creiam no que ele acredita.

Primeiro, quem não é discípulo de Jesus é mostrado como selvagem, inescrupuloso ou fraco. Os soldados romanos são tão completamente bárbaros que não raro pode-se compará-los a animais, os sacerdotes judeus querem apenas o estabelecimento de seu status quo religioso, e Pilatos, coitado, é apenas um governante sem pulso, que se rende ao que parece agradar mais. Por outro lado, muitos dos que cruzam o caminho de Jesus rapidamente se convertem a suas crenças, vide o soldado que tem a orelha recomposta pelo messias ou o jovem que o ajuda a carregar a cruz. A questão não é discutir o carisma de Jesus, mas a adequação dessa informação na intenção da narrativa construída pelo cineasta.

Gibson é autoritário ao defender sua visão religiosa. É tão arrogante que se dispõe a usar o próprio personagem que o guia para vender seu peixe talvez porque conheça as propriedades multiplicativas do toque de Jesus. Gibson chicoteia e espanca Cristo com riqueza de detalhes, explorados com precisão e sutileza pela câmera de Caleb Deschanel, que já tinha mostrado a fúria de um cavalo selvagem em O Corcel Negro. Aqui, os cavalos selvagens são os soldados romanos que extraem do messias do Cristianismo o máximo possível de sangue. Deschanel passeia pela formação de cicatrizes, pelo surgimento de abcessos, pelas possibilidades plásticas de uma chicotada atingindo a carne.

Monica Bellucci, estuprada por mais de dez minutos no questionado Irreversível (Gaspar Noé, 2002), assiste chocada a interminável exibição do sadismo contra o que é diferente. Deve ter pensado o quão mínimo foi o sofrimento de sua personagem naquele filme frente a uma cena deste tipo. Pois é, Gibson conseguiu mostrar como as pessoas podem ser cruéis gratuitamente contra quem representa o contrário daquilo que se acredita. Ou pior, quando não chega a ser o contrário, mas apenas não é igual. O diretor não banaliza a violência como se convencionou afirmar. Ele banaliza muito mais. Banaliza sua própria tentativa de discutir religião.

Difícil levar a sério alguém que precisa espancar seu próprio deus para apontar sua verdade. Difícil mesmo é acreditar nas intenções conciliatórias de alguém que baniu homossexuais do elenco e da equipe técnica de seu filme. Mel Gibson em A Paixão de Cristo é tão autoritário quanto George W. Bush na sua invasão ao Iraque. É tão inescrupuloso quanto o policial torturador que espanca sua vítima até que ela confesse pelo crime que nunca cometeu.

A PAIXÃO DE CRISTO
The Passion of the Christ, Estados Unidos, 2004

Direção: Mel Gibson.

Roteiro: Benedict Fitzgerald e Mel Gibson.

Elenco: Jim Caviezel, Maïa Morgenstern, Monica Bellucci, Claudia Gerini, Sergio Rubini, Giovanni Capalbo, Rosalinda Celentano, Francesco De Vito, Hristo Jivkov, Luca Lionello, Fabio Sartoir, Mattia Sbragia, Hristo Shopov, Luca De Dominicis.

Fotografia: Caleb Deschanel. Edição: John Wright. Música: John Debney. Direção de Arte: Franceso Frigeri. Figurinos: Maurizio Millenotti. Produção: Bruce Davey, Mel Gibson e Stephen McEveety.

nas picapes: Reverence, The Jesus and Mary Chain.

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