A FILOSOFIA PEDE CARONA

Filme que transforma Tom Cruise em assassino não deixa de ser veículo para o ator

Existe um certo consenso de que Colateral é um dos melhores filmes da temporada, quiçá do ano. Um filme que dá um passo além do gênero policial convencional, que investiga as motivações de seus personagens. É bem certo que há esta intenção, mas seus resultados não são tão majestosos assim. Michael Mann comete uma vez mais seu thriller com profundidade, espécie de marca do cinema que já faz há alguns anos. E, como nas últimas vezes, pega carona num astro e o coloca num papel menos óbvio que os de costume. Fez isso com Robert De Niro, Al Pacino e, agora, escala Tom Cruise como um assassino profissional que percorre Los Angeles com um taxista como refém/cúmplice.

Esperto, Michael Mann, que sabe o material que tem à mão, escolhe um não-lugar para desenvolver sua história. Parte importante do filme acontece dentro de um táxi. Mann protege suas criaturas da interferência do cenário e ressalta o texto e o trabalho dos atores. Vincent, o assassino, e Max, o motorista, estão enjaulados nos limites do veículo, imersos na imensidão de uma Los Angeles noturna raramente vista no cinema. São um ponto mínimo no mapa. Eles estão lá e não estão em lugar nenhum, o que cria uma experiência curiosa no deslocamento espacial da dupla. Enquanto isso, Cruise e Jamie Foxx ficam presos ao diálogo que se desenvolve entre seus personagens, que se tornam quase íntimos, ao ponto de questionarem desejos, ambições e motivações um do outro. Ambos procuram entender o funcionamento da vida do parceiro/adversário. À medida que o relógio anda, a conversa entre os dois se torna mais próxima e ganha proporções filosóficas.

É aí que Mann perde um ponto.

A intimidade entre os estranhos começa a parecer calculada, esquematizada, muito pensada. A boa idéia ganha ares de artificial. A moldura se revela com facilidade e a trama começa a se transformar em veículo para astro. Para o rosto mais conhecido do cinema nos últimos vinte anos, aceitar uma personagem com esta é uma atitude louvável, admirável, ousada. Mas interpretar Vincent é mais uma etapa do plano que Cruise desenvolve há um bom tempo de se tornar um ator sério e respeitado, dissociando-se da imagem de galã bonzinho que lhe rendeu alguns milhões de dólares.

No entanto, Tom Cruise sabe que este filme é um filme de atores, onde há superexposição das duas personagens centrais. E qualquer falha pode ser implacável. Ele adota aquela que talvez seja a melhor tática para um ator com suas muitas limitações: anula-se numa interpretação discreta. Procura não chamar atenção para suas falhas e, por fim, consegue um desempenho acima da média. O astro se revela bem generoso com seu parceiro de cena. Contido, ele se iguala a Jamie Foxx, correto, e a dupla funciona bem mesmo quando o espectador fica ciente da manipulação que o roteiro opera para que o filme alcance alcunha de renovador. Dois exemplos deste golpe baixo: quando Vincent conhece a mãe de Max e quando se revela um exímio conhecedor de jazz em uma de suas paradas.

O que acontece, porém, é que embora siga um caminho particular, o filme se assume como cinemão na sua meia hora final. Michael Mann, que, sejamos justos, é um cineasta bom, embala tudo numa fotografia que valoriza a beleza inerente da cidade grande. A captura das imagens reedita os trabalhos feitos em Fogo contra Fogo (95) e O Informante (99), mas é muito eficiente. Se ele peca num certo exagero de sons diversos da trilha sonora, acerta justamente no que pretende negar: Colateral busca incessantemente a peculiaridade, mas é justamente quando se apóia nos pequenos lugares comuns que o filme se resolve com prazer e uma certa dose de inteligência.

COLATERAL
Collateral, EUA, 2004.

Direção Michael Mann.

Roteiro: Stuart Beattie.

Elenco: Jamie Foxx, Tom Cruise, Mark Ruffalo, Jada Pinkett Smith, Javier Bardem, Peter Berg, Bruce McGill, Irma P. Hall, Barry Shabaka Henley, Jason Statham.

Fotografia: Dion Beebe e Paul Cameron. Montagem: Jim Miller e Paul Rubell. Direção de Arte: David Wasco. Música: James Newton Howard (com música adicional de Zachary Koretz e Antonio Pinto). Figurinos: Jeffrey Kurland. Produção: Michael Mann e Julie Richardson. Site Oficial: www.collateral-themovie.com.

nas picapes: More Than This, Roxy Music.

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