A FILOSOFIA PEDE CARONA
Filme que transforma Tom Cruise em assassino não deixa de ser veículo para o ator
Esperto, Michael Mann, que sabe o material que tem à mão, escolhe um não-lugar para desenvolver sua história. Parte importante do filme acontece dentro de um táxi. Mann protege suas criaturas da interferência do cenário e ressalta o texto e o trabalho dos atores. Vincent, o assassino, e Max, o motorista, estão enjaulados nos limites do veículo, imersos na imensidão de uma Los Angeles noturna raramente vista no cinema. São um ponto mínimo no mapa. Eles estão lá e não estão em lugar nenhum, o que cria uma experiência curiosa no deslocamento espacial da dupla. Enquanto isso, Cruise e Jamie Foxx ficam presos ao diálogo que se desenvolve entre seus personagens, que se tornam quase íntimos, ao ponto de questionarem desejos, ambições e motivações um do outro. Ambos procuram entender o funcionamento da vida do parceiro/adversário. À medida que o relógio anda, a conversa entre os dois se torna mais próxima e ganha proporções filosóficas.
É aí que Mann perde um ponto.
A intimidade entre os estranhos começa a parecer calculada, esquematizada, muito pensada. A boa idéia ganha ares de artificial. A moldura se revela com facilidade e a trama começa a se transformar em veículo para astro. Para o rosto mais conhecido do cinema nos últimos vinte anos, aceitar uma personagem com esta é uma atitude louvável, admirável, ousada. Mas interpretar Vincent é mais uma etapa do plano que Cruise desenvolve há um bom tempo de se tornar um ator sério e respeitado, dissociando-se da imagem de galã bonzinho que lhe rendeu alguns milhões de dólares.
No entanto, Tom Cruise sabe que este filme é um filme de atores, onde há superexposição das duas personagens centrais. E qualquer falha pode ser implacável. Ele adota aquela que talvez seja a melhor tática para um ator com suas muitas limitações: anula-se numa interpretação discreta. Procura não chamar atenção para suas falhas e, por fim, consegue um desempenho acima da média. O astro se revela bem generoso com seu parceiro de cena. Contido, ele se iguala a Jamie Foxx, correto, e a dupla funciona bem mesmo quando o espectador fica ciente da manipulação que o roteiro opera para que o filme alcance alcunha de renovador. Dois exemplos deste golpe baixo: quando Vincent conhece a mãe de Max e quando se revela um exímio conhecedor de jazz em uma de suas paradas.
O que acontece, porém, é que embora siga um caminho particular, o filme se assume como cinemão na sua meia hora final. Michael Mann, que, sejamos justos, é um cineasta bom, embala tudo numa fotografia que valoriza a beleza inerente da cidade grande. A captura das imagens reedita os trabalhos feitos em Fogo contra Fogo (95) e O Informante (99), mas é muito eficiente. Se ele peca num certo exagero de sons diversos da trilha sonora, acerta justamente no que pretende negar: Colateral busca incessantemente a peculiaridade, mas é justamente quando se apóia nos pequenos lugares comuns que o filme se resolve com prazer e uma certa dose de inteligência.
COLATERAL
Collateral, EUA, 2004.
Direção Michael Mann.
Roteiro: Stuart Beattie.
Elenco: Jamie Foxx, Tom Cruise, Mark Ruffalo, Jada Pinkett Smith, Javier Bardem, Peter Berg, Bruce McGill, Irma P. Hall, Barry Shabaka Henley, Jason Statham.
Fotografia: Dion Beebe e Paul Cameron. Montagem: Jim Miller e Paul Rubell. Direção de Arte: David Wasco. Música: James Newton Howard (com música adicional de Zachary Koretz e Antonio Pinto). Figurinos: Jeffrey Kurland. Produção: Michael Mann e Julie Richardson. Site Oficial: www.collateral-themovie.com.
nas picapes: More Than This, Roxy Music.