Cronologia das tragédias (ou: o desinteresse pela ética e pelo homem)

Paul Haggis assinou o roteiro de um dos filmes mais prestigiados do ano, mas era justamente o roteiro o que me incomodava em Menina de Ouro. Era justamente o texto, a história que nunca me fizeram enxergar a obra-prima avistada por muitos, ou quase todos, no filme de Clint Eastwood. Apesar de ter uma delicadíssima direção, o roteiro nunca conseguia fugir de lugares comuns dos mais toscos e alguns textos, sobretudo na narração em off de Morgan Freeman, eu classificaria sem pensar duas vezes de constrangedores.

Eis então que Haggis passa a direção, num filme elogiadíssimo pela imprensa norte-americana, cotado como possível representante do “cinema independente” entre as indicações ao Oscar, com um belo elenco cheio de atores talentosos (Cheadle, Newton, Dillon). Eu realmente achei que iria gostar do filme, mas o único sentimento que ele me causou foi repulsa. Repulsa não por causa do tratamento primário à questão racial (inclusive numa época em que o conceito de raça já foi derrubado), mas num prisma um pouco maior. Uma amiga que assistiu ao filme comigo e recentemente tinha voltado dos Estados Unidos tentou me convencer do quanto o confronto entre raças é real naquele país e o quanto o filme tem de fiel nesse retrato.

Mas eu realmente não acho que seja esta a questão seja essa, a da fidelidade a uma situação abstrata. O que mais me incomoda em Crash é sua visão determinista de como todos estamos destinados a nos corromper de alguma maneira, de como estamos fadados ao racismo, à intolerância, a irmos de encontro à ética. Haggis não acredita no ser humano enquanto elemento ativo diante de seu próprio cotidiano. Para ele, o homem se adapta às situações independentemente de um ponto de vista moral anterior sobre isso. A corrupção é questão de tempo. Ou ainda não se teve a chance de se corromper ou a fatalidade conspira para que o herói vire vilão. Porque no filme quem é bonzinho ou se corrompe ou é levado pelo acaso à corrupção. E quem é malvado é forçado pela vida a algum tipo de rendenção.

Não se trata do quanto de real isso possa ter, mas de como é cômodo ou ingênuo ou traiçoeiro tranformar certas situações em padrões comportamentais ou casualidades trágicas da vida. Se Haggis acredita mesmo em sua visão das pessoas como espelho sociológico dos Estados Unidos e/ou do mundo, eu o chamaria de limitado e equivocado por não defender suas personagens na mesma medida em que não defende o homem, que surge como produto do meio. Se ele usa essa cronologia da tragédia para buscar afirmação através do quão as pessoas estão propensas a achar tudo que “mostra a verdade” muito digno, eu o chamaria de um verdadeiro vilão. Mas como eu costumo acreditar nas pessoas, espero que a primeira opção seja a real.

Crash – No Limite
Crash, Estados Unidos, 2004.
Direção:: Paul Haggis.
Roteiro: Paul Haggis e Robert Moresco, baseado em história de Paul Haggis.
Elenco: Karina Arroyave, Dato Bakhtadze, Sandra Bullock, Don Cheadle, Art Chudabala, Tony Danza, Keith David, Loretta Devine, Matt Dillon, Jennifer Esposito, Ime Etuk, Eddie J. Fernandez, William Fichtner, Brendan Fraser, Billly Gallo, Ken Garito, Nona Gaye, Terrence Howard, Ludacris, Thandie Newton,
Ryan Phillippe, Alexis Rhee, Ashlyn Sanchez, Larenz Tate.
Fotografia: James Muro. Montagem: Hughes Winborne. Direção de Arte: Laurence Bennett. Música: Mark Isham. Figurino: Linda M. Bass. Produção: Don Cheadle, Paul Haggis, Mark R. Harris, Cathy Schulman e Bob Yari. Site Oficial: Crash. Duração: 113 min.

nas picapes: Tears to Shed, Danny Elfman.

Comentários

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11 comentários sobre “Crash – No Limite”

  1. Não vi nem devo ver no cinema (não tá dando nem pra pegar a repescagem da Mostras).

    O off do Freeman que me incomodou foi o de “Guerra dos Mundos”; no do Clint, achei que funciona especialmente no final. Queria revê-lo, mas edição de DVD em fullscreen não dá.

  2. Ícaro, quando eu falei de conceito de raça derrubado, estava me referindo ao conceito científico mesmo. No seu comentário, você inclusive fala da raça humana. Hoje já não se entende mais que o homem seja dividido em raças (branca, negra, amarela) e, sim, todos sejam de uma raça apenas, a raça humana.

    Mas entendi seu recado. O meu problema não é esse, como eu disse no texto. Não acho que não exista este problema étnico. Acho que há, sim. O problema é, como o filme sugere, esta questão virar o “inevitável” na vida das pessoas, seja pela “natureza” ou pela “fatalidade”.

    Junior, creia: a Sandra Bullock é a melhor atriz do filme. Está bem mesmo. Os nomes como Matt Dillon e Thandie Newton, cotados pro Oscar, eu acho bons, ok. Don Cheadle, sem sal.

  3. Conceito de raça derrubado? Nem aqui nem lá, Chico. E quando se aborda as nacionalidades, aí sim a coisa pega fogo lá. Por aqui sabemos bem como são vistos os nordestinos no Sul (só para ficar com um exemplo. A visão de Haggis pode ser bem pessimista, jamais simplista ou fantasiosa, porque se a gente for olhar direitinho, está difícil mesmo acreditar no ser humano (ainda que as exceções existam sim). Mas não é preciso ir longe para ver o quanto corruptível é a raça humana. Por tudo isso, gosto do filme. Abraço.

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