Ilha do Medo

Ilha do Medo é um filme antigo, perdido no tempo, quase datado. Parece um daqueles suspenses psicológicos feitos entre o final dos anos 40 e meados da década de 60, em que os roteiros são sotisticados, mas não necessariamente assustadores. E o que torna o filme grande é a direção. No longa de Martin Scorsese, é justamente o trabalho do diretor o que diferencia o filme e o leva para outro patamar. Apaixonado pela história do cinema, Scorsese usa Ilha do Medo para desfilar suas referências sobre filmes noir, de suspense e de horror.

Scorsese trabalha com o onírico, o que permite que suas opções arriscadas, que poderiam estragar filmes com uma narrativa mais convencional, fluam com naturalidade. Ilha do Medo é um filme em que a direção engole o roteiro. O texto de Dennis Lehane, o mesmo autor de Sobre Meninos Lobos, tem uma construção inteligente, que homenageia e recicla a literatura e o cinema de décadas atrás, mas pode ser maçante ou mesmo óbvio aqui e ali, como na cena em que a personagem de Patricia Clarkson explica “o que está acontecendo”. A direção dá classe ao material.

O diretor fez sessões de filmes antigos, como Desafio do Além, de Robert Wise, e Os Inocentes, de Jack Clayton, para o elenco e a equipe para dar ao grupo o tom exato do que pretendia. Leonardo DiCaprio, que produz o filme, é quem captou melhor a ideia: está excelente como o confuso agente do FBI que investiga o desaparecimento de um manicômio. Mas Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sydow e Emily Mortimer também sabem circundar os limites entre o sóbrio e o exagero muito bem. E Jack Earle Haley, num papel minúsculo, dá o exato tom da loucura pedido por Scorsese.

Por outro lado, o diretor poucas vezes nos últimos tempos administrou tão bem seus colaboradores. A montagem de Thelma Schoonmaker, que perdeu a mão em alguns de seus filmes recentes, parece bastante controlada – ainda que os momentos mais “fora de prumo” combinem bastante com o conjunto. Robert Richardson opera sua câmera com reverência ao cinema noir. Há pelo menos uma dúzia de imagens que remetem a um cinema B clássico (sendo que o cinema de Scorsese é um cinema A clássico). A trilha costura composições de autores reconhecidos sempre num tom acima, como se estivesse num modo “vamos enloquecer o espectador”.

O mais interessante do cinema noir é como seus elementos colocam a representação do real em conflito com a farsa o tempo todo. Há vários momentos histriônicos nos exemplares do gênero que, mesmo podendo ter surgido de falhas, se tornaram características, particulares desse tipo de cinema. Então os momentos de descontrole do filme de Scorsese funcionam tanto como representação do próprio ambiente de insanidade do longa quanto como homenagem aos gêneros reinterpretados pelo cineasta. E, por mais que estes momentos (overactings, câmeras nervosas, trilha excessiva) pareçam exageros ou descuidos, tudo parece estar exatamente da maneira como Scorsese planejou.

Ilha do Medo EstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
[Shutter Island, Martin Scorsese, 2010]

Comentários

comentários

14 comentários sobre “Ilha do Medo”

  1. Chico, eu não sabia dessas sessões de filmes que ele fez com os atores – te confesso que ao terminar de ver “Ilha do Medo” imediatamente pensei em quando li “A Volta do Parafuso”.
    Amei o filme tanto quanto amei o livro.
    Beijo,

  2. Assisti hoje. Filme cresceu bastante após sair do cinema. Tive impressão que aquela trilha sonora tem ecos do Bernard Herrman. Até acho o jeito noir do filme remete bastante ao excelente “Cabo do Medo”. Acredito que o filme tem muito de Vertigo do Tio Hitch e Invasores de Corpo do Siegel,bem como revisitações as obras antigas dos Scorsese.

    Adoro aquela atmosfera de pesadelo e paranóia que permeia todo o filme, bem como a degradação psicológica da personagem do DiCaprio (como a maioria dos personagens dos filmes de Scorsese).

    A cena do Lago pra mim é o grande apice do filme, toda aquela revelação incomoda e é magistral ao mesmo tempo.

    Abraços Chico.

  3. Achei o filme muito bom! Refêrencias de um cinema que não se faz mais hoje em dia e que faz falta! Ótima resenha, vc foi perfeito em falar sobre o filme… Há tempos que não via um suspense com clima noir tão bem feito!

  4. Adriano,

    tive que editar seu comentário porque você contava o final do filme, pecado mortal. O filme, o começo, o final, estão completamente de acordo com o cinema que Scorsese emula o tempo todo. Não acho que haja incoerência evocar o macarthismo e seguir outra linha de narrativa depois. É apenas outra opção.

  5. Maria Clara, por que não usar psicologia para discutir um filme que fala de identidade, paranóia, psiquiatria etc? Não discordo que seja um filme impecável no aspecto formal (direção, montagem, atuações…), mas eu acredito que a solução de roteiro para o final seja tão infantil, tão psicanálise de boteco, que compromete o conjunto do filme.
    Além do mais, num filme que evoca o macartismo e as manipulações políticas dos anos 50, não pôr sob suspeita a manipulação a qual os psiquiátras submetem o paciente é de uma incoerência gritante.
    Chico, a cena final poderia redimir o resultado, mas não é explorada.
    Um filme não precisa ser necessariamente psicológico ou político, mas quando se entra numa seara, é bom ir até o fim. Por vezes um grande roteirista faz falta a um grande diretor. É o caso.

  6. Se você usar o filme em debates sobre psicologia ok! Mas usar psicologia,espiritismo,paranormalidade,cristianismo etc,como base para debater filmes não tem nada a ver. O negocio aqui é discutir cinema em sua arte total, mesmo que o filme fale sobre isso .Cinema é ficção e não exatidão.
    Que desfecho seria melhor ? os cliches de sempre.Se fosse outro diretor iria fazer um final corrido e bombastico.O que fez este filme preferiu com dialogo
    que pode significar inteligencia.

  7. scorcese da aula de direção e mostra que não precisa de 3d,efeitos superespeciais,etc.cinema é isso minha gente,carne,sereshumanos,instinto e inteligencia.hithicock adoraria isso !
    dicaprio detona também. isabela boscov não gostou do filme por que scorcese homenageia o cinema em si e por que parece que ele dirigiu com espirito de iniciante .graças a deus que ele faz isso ainda !

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *