Um Caminho para Dois

Um Caminho para Dois EstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
[Two for the Road, Stanley Donen, 1967]

Um Caminho para Dois, de certa forma, resume os anos 60, trazendo para o seio de Hollywood uma visão libertária do amor, das relações e do casamento. A máscara é de comédia maluquinha, mas o filme abre um debate profundo sobre assuntos muito sérios. Audrey Hepburn já era a namoradinha da América havia quase 15 anos e Albert Finney acabara de se tornar um astro com As Aventuras de Tom Jones. Os dois estão impressionantes ao dar voz a cada cena escrita pelo roteirista Frederic Raphael, um texto tão irônico quanto delicado sobre as transformações do amor ao longo de um relacionamento. Cabe ao mestre Stanley Donen dar movimento a esse encontro de propostas, o que ele faz com o mesmo ritmo delicioso de seus mais alucinados musicais. As cenas de estrada, que atravessam, fora de ordem, a cronologia de viagens do casal, invadem umas as outras, fornecendo uma inesperada melodia extra à narrativa. Audrey Hepburn desfila um figurino de algum megaestilista cada vez que aparece na tela, mas o que poderia emprestar ao filme um tom mercantilista, que ele não ignora mesmo,  se transforma em mais uma das brincadeira de Donen. Dono de vários clássicos, aqui ele realizou um de seus projetos mais especiais, que talvez fosse o filme definitivo sobre o amor, se o amor fosse tão definitivo assim.

Manila nas Garras da Luz

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[Maynila: Sa mga kuko ng liwanag, Lino Brocka, 1975]

Os olhos de Julio dizem muito sobre ele. Seu olhar triste, mas cheio de esperança tem um compromisso certo, dia após dia. O rapaz passa horas encarando fixamente aquela janela na Rua da Misericordia. Julio chegou na capital há alguns meses. Saiu sem avisar da vila de pescadores onde nasceu. Tudo por causa de Ligaya Paraiso. O namoro com a moça mais linda da região era proibido. A mãe dela não gostava muito da ideia de Ligaya se envolver com alguém tão pobre quanto ela. Por isso, ficou até feliz quando uma senhora chegou à vila para recrutar jovens para trabalhar em Manila. Seria uma chance de ganhar dinheiro, ajudar a família e se arrumar na vida. Ligaya ainda olhou pra trás quando entrou naquela jangada. Para depois sumir para sempre. Julio decidiu ir atrás de seu grande amor. Existem dois protagonistas em Manila nas Garras da Luz, esse monumento do cinema mundial dirigido há 40 anos por Lino Brocka: um é Julio, o homem; o outro é Manila, a cidade. Desde o primeiro momento, Brocka deixa claro que este é um daqueles contos do homem contra a cidade, do amor contra o mundo. Nos 125 minutos seguintes, Julio e Manila vão duelar até um sufocar o outro. Nessas pouco mais de duas horas, Brocka faz um inventário das tragédias da cidade: com Julio, discute o subemprego, a violência, a habitação irregular, o mercado do sexo masculino, o mercado do sexo feminino, entre dezenas de outras questões. O impressionante é que a abordagem do cineasta nunca cai num discurso meramente panfletário porque Brocka amarra todas suas discussões à jornada de Julio em busca de Ligaya. E a aridez da vida na capital das Filipinas ganha um inesperado contorno melancólico, que torna qualquer debate demasiadamente humano. Tanto quanto a bela interpretação de Bembol Roco, à epoca Rafael Roco Jr., um estreante tão virgem em frente às câmeras quanto sua personagem em frente a Manila.

O Show Deve Continuar

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[All That Jazz, Bob Fosse, 1979]

Alan Heim ganhou um Oscar pela montagem de O Show Deve Continuar. E mais do que a música, mais do que os figurinos, mais até do que incrível performance de Roy Scheider, é justamente a montagem a alma do filme-testamento de Bob Fosse. Os cortes incrivelmente rápidos, que escondem cenas que duram alguns segundos, traduzem a urgência de um protagonista que atravessa o filme flertando e negociando com a morte. Joe Gideon, personagem de Scheider, é uma espécie de alter ego de Fosse, que teria tido a ideia de fazer o filme depois de um ataque cardíaco, e vários dos coadjuvantes do longa são inspirados em personagens reais da Broadway. Em certo momento, Angelique, a morte vivida por uma lindíssima Jessica Lange, pergunta para Gideon: “você acredita no amor?”. E ele responde: “eu acredito em dizer ‘eu te amo’. A ironia presente em todos os trabalhos de Fosse aqui atinge o nível do sarcasmo que contamina todo o projeto e é a maneira com que o diretor traduz os bastidores do teatro musical americano. Este talvez seja o maior feito de All That Jazz: ao mesmo tempo em que é um filme sobre a intimidade de um homem e um retrato crítico de um universo, Fosse fez um musical que dá sentido à palavra espetacular.

Meu Único Amor

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[My Best Girl, Sam Taylor, 1927]

A cena que introduz a personagem de Mary Pickford em Meu Único Amor já leva o filme para um nível acima das comédias românticas da época. É quando Maggie, que trabalha como estoquista numa loja, surge com as panelas que precisam ser repostas para a venda. Ela caminha lentamente tentando carregas tanta coisa. Uma panela vai ao chão. Maggie consegue abaixar uma mão e pegá-la de volta. Dá um passo. Duas panelas caem no chão. Com o pé, ela as cata os objetos mais uma vez. Dá mais um passo. Três panelas caem no chão. O diferencial desta cena clássica de filmes mudos é que, durante seus muitos segundos, a câmera está fixa nos pés de Pickford, só se move para atrás, acompanhando os movimentos das personagem. O diretor de fotografia, Charles Rosher, é o mesmo de Aurora, o filme mais impressionante do mundo. Ao longo de Meu Único Amor, ele aprontaria mais uma ou duas vezes, como no passeio na Maggie e Joe na carroceria do caminhão ou no encontro dos namorados dentro de uma das caixas do estoque. Se as imagens tiram o filme do lugar comum, o roteiro, uma história de príncipe encantado como tantas outras, encontra no diretor, Sam Taylor, um defensor de sua ingenuidade. Ele cria gags com repetições, edições e dirige lindamente o ótimo elenco. O filme, exibido numa noite deliciosa na área externa do Auditório do Ibirapuera, foi o último filme silencioso da atriz e ainda tem um caráter premonitório porque Pickford se casou, tempos depois, com seu par romântico.

O Bandido Giuliano

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[Salvatore Giuliano, Francesco Rosi, 1962]

O mais interessante de O Bandido Giuliano é a perspectiva que Francesco Rosi escolhe para desenvolver sua narrativa. No filme, ele não é uma personagem propriamente dita,  mas uma espécie de fantasma, uma sombra que acompanha os coadjuvantes de sua história de fora-da-lei que matou um policial para os italianos e herói que distribui comida para os sicilianos. O ponto de partida do filme já é um tanto revolucionário: na primeira cena, Salvatores Giuliano já está morto e, bem próximo de um cinejornal, o longa segue toda a repercussão do assassinato, a caça a seus companheiros e o julgamento onde são apontados os responsáveis pela emboscada que tirou sua vida. O diretor utiliza uma herança neorrealista para adotar um tom extremamente documental, reforçado pela fotografia em preto-e-branco e pela câmera, muitas vezes na mão, misturando cenas reais gravadas nas ruas à encenação naturalista do pós-morte de Giuliano. O efeito é a martirização do anti-herói, que ganha um status de mito da luta pela separação da Itália.

Comentários

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4 comentários sobre “Mostra SP 2015: meu diário de bordo – post 11”

  1. Ola Chico, apenas um comentário sobre Um caminho para dois; os figurinos de Audrey neste filme foram escolhidos em lojas de departamento, pois uma mulher classe média americana não seria tão glamorosa… acho que ela que era diferenciada mesmo e dava impressão que estava vestindo algo especial sempre.

  2. também achei Manila nas Garras da Luz uma obra-prima!
    brutal e lírico ao mesmo tempo.
    brutal pela violência da cidade, lírico pelo amor dos dois jovens

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