O Beijo Amargo

Desde a primeira cena de O Beijo Amargo, Samuel Fuller mostra que não está disposto a fazer concessões. O espectador é apresentado a sua protagonista no meio de um acesso de fúria, atacando violentamente um homem a golpes de sapato, e, por fim, revelando que usa uma peruca para esconder a cabeça sem um só fio de cabelo. Estamos diante de uma heroína em estado puro, mas sem qualquer pureza. A imagem inicial persegue quem assiste ao filme ao longo de seus 90 minutos, na mesma medida em que o passado da personagem é um fantasma que ameaça a transformação que ela tanto almeja. Fuller versa sobre a falência do “sonho americano”, desmistificando o idílio da vida numa cidade do interior, subvertendo o perfil da mocinha da história.

Para fugir de seu passado, Kelly chega a uma cidade pequena, um lugar que parece se manter isolado dos vícios e pecados do mundo exterior graças ao empenho de dois guardiões: um é um mecenas milionário que gasta a fortuna em viagens ao exterior para trazer presentes para os amigos ao mesmo tempo em que mantém um hospital que cuida de crianças portadoras de deficiências físicas. O outro é um policial que não usa farda, mas é querido por todos, que trata de mandar as prostitutas que chegam ao lugar para um bordel afastado da cidade – longe o suficiente para manter a população “limpa” -, mas não sem antes perder algumas horas com as moças. Dois exemplos da hipocrisia típica de uma sociedade que enxerga em sua pequena “aristocracia” um modelo de segurança.

A crítica de Fuller tem várias camadas. Com homens falhos, estamos diante de um filme essencialmente feminino, mas modificado para englobar o olhar e o universo do cineasta. De outro lado, temos a ironia de uma protagonista “suja”, que enxerga naquela cidade a chance de redenção, mas, para alguém com seu passado, o lugar numa sociedade tão perfeita precisa ser conquistado. É aí que começa a peregrinação do cineasta pelo que aparentemente é um melodrama clássico, com cenas que parecem inocentes, que atingem a beleza incrível do momento em que Constance Towers e as crianças dividem uma música infantil, mas que escondem nos parafusos das muletas a interminável ironia de Fuller.

A princípio, o cineasta parece acreditar que uma espécie de destino rege a vida dos personagens, sobretudo a da protagonista, mas logo em seguida, mostra que, pelo contrário, Kelly é a última resistente de uma série de pessoas genuínas, que se opõem ao status quo. É ela quem guarda a reserva moral deste filme em que Fuller trabalho com o excesso, o exagero de violência ou de drama, para atacar o pensamento comum. É o futuro da virtude nas mãos de uma puta.

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[The Naked Kiss, Samuel Fuller, 1964]

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