AuroraFoi meu segundo ano no Olhar de Cinema, em Curitiba, e o festival já me parece um dos mais interessantes realizados no Brasil, sem dever nada ao que se promove no Eixo Rio-São Paulo. Entre os principais destaques desta edição, estava uma mostra realmente espetacular dedicada ao alemão F.W. Murnau, que sob a curadoria de Aaron Cutler, trouxe para a cidade os dez filmes do cineasta com cópias, restauradas, disponíveis em DCP. Para se ter uma ideia, dos 21 filmes que Murnau dirigiu, 9 estão perdidos e, dos outros 12, todos os com cópia digital em boa qualidade foram exibidos em Curitiba. Pude rever meu meu filme favorito (da vida mesmo), Aurora, estreia de Murnau em Hollywood, uma obra que a meu ver marca ao mesmo tempo o ápice e a morte do cinema silencioso, e mais os clássicos Nosferatu, o filme que definiu o cinema de horror, e Tabu, o lendário documentário em parceria com Robert J. Flaherty, que nunca pude conferir numa tela de cinema e em cópias dessa magnitude. Dos longas que nunca tinha visto, assisti o bom Caminhada Noite Adentro, e os ótimos O Castelo de Vogelöd e Fantasma, que representam caminhos diferentes de Murnau, o expressionismo e o romantismo, como bem explicou Aaron Cutler. Além destes, vi também Anatahan, filme raro e estranho que Josef von Sternberg dirigiu no Japão, e que não conseguiu me deixar à vontade.

SoldadoA lista de filmes da nova safra também estava saborosa e traz alguns dos longas mais interessantes que eu vi neste ano. Dos cinco filmes vistos, o que menos gostei foi Corpo Estrangeiro, da tunisiana Raja Amari, que começa prometendo com imagens fortes de refugiados tentando atravessar o Mediterrâneo para depois se tornar a história de uma mulher determinada a construir sua vida num país estrangeiro e xenófobo. Aos poucos, o filme começa a abandonar o tema central para se converter num triângulo amoroso obsessivo e pouco convincente entre a protagonista Sarra Hannachi, outro imigrante vivido por Salim Kechiouche e a onipresente Hiam Abbass. Já Soldado, do argentino Manuel Abramovich, é mais interessante. O documentário, seguindo um jogo estético parecido ao proposto pelo diretor no curta La Reina (assista aqui), acompanha, intercalando takes bem abertos e close ups, a rotina de um integrante da banda militar do Exército. De longe, o cineasta parece querer dissolver a imagem auto-imposta da instituição, mostrando exercícios marciais desajeitados, sem ordem ou rigor. De perto, em vez de mostrar o tradicional ritual de esforços militar, Abramovich se concentra em exames médicos e momentos corriqueiros como as diferentes maneiras de arrumar uma cama. Pode não ser um grande filme, mas nunca poderá ser acusado de previsível.

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[Corps Étranger, Raja Amari, 2016]

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[Soldado, Manuel Ambramovich, 2017]

MachinesA cena de abertura de Machines é escandalosamente bonita e assustadora. A câmera passeia por um cenário completamente às escuras, exceto por alguns focos de luz que ajudam a mostrar as silhuetas das máquinas e homens que habitam aquele lugar. É uma fábrica de tecidos em Gujarat, na Índia, mas poderia ser uma mansão mal assombrada, cheia de trabalhadores zumbis que, quando não realizam repetitivas operações braçais descansam onde podem, em cima do que podem para recuperar suas forças. O ambiente é sujo e aqueles homens não têm muita chance que não entrar em contato diário com substâncias tóxicas, corantes e um maquinário manipulado quase que artesanalmente e pronto para lhes arrancar partes do corpo e todo seu orgulho. O mais curioso em relação ao filme, premiado em Sundance, é que o diretor, o estreante Rahul Jain é filho de outro Rahul Jain, um designer de tecidos dono de uma fábrica como aquela. Em seu filme-tese, no entanto, o cineasta não assume um discurso, se dedica ao registro e ainda se coloca no centro de uma polêmica: até onde um documentarista pode – e deve – ir, como mostra a cena em que é cercado pelos operários. Existem alguns caminhos um tanto óbvios, como a poesia dos tecidos ao vento ou o discurso de vilão do dono da fábrica, mas, no geral, além de honesto, o filme consegue enxergar os momentos de beleza, sem filtros, num ambiente onde a feiura ganha vários níveis.

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[Machines, Rahul Jain, 2017]

ReyNa página oficial do californiano Niles Atallah, encontra-se links para seus mais variados trabalhos audiovisuais, incluindo filmes, fotografias, instalações e o que ele chama de experimentos. Radicado no Chile, seu segundo longa, Rey, é um achado, uma obra muito particular sobretudo se comparada ao cinema que se produz hoje em dias na América Latina. A partir da lenda – ou não – do francês que teria virado rei da Patagônia, Atallah desenvolve uma ficção histórica que se orgulha e ressalta seus dois lados. De um lado, elogia a ficção com um trabalho excepcional de texturas, sobreposições e intervenções de imagens e sons, que lembra um pouco o que Guy Maddin faz em em seus filmes, especialmente em O Quarto Proibido. Do outro, Atallah manipula a história como um eco fantasmagórico do passado do país ou da própria América Latina que enxerga os povos indígenas como seres da floresta e mascara as intenções de quem escreve os livros. Rey não acaba no fim. Seus experimentos visuais e sonoros ressoam nos olhos e ouvidos do espectador durante algum tempo. Se, em algum momento, as intervenções do cineasta poderiam parecer que terminavam em si mesmas, o tempo as deixa na condição de plataforma ideal para contar a trajetória de um personagem sem verdades absolutas, muito perto da lenda, muito perto da História.

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[Rey, Niles Atallah, 2017]

Um Sonho TranquiloUm Sonho Tranquilo é um encontro de desencontros. De um lado, um filme rodado em Seoul, na Coreia do Sul, com um elenco formado quase que totalmente por coreanos; do outro, um diretor chinês, com apenas um longa e alguns curtas no currículo. De um lado uma protagonista que imigrou para outro país em busca do pai que não conhecia. Do outro, um pai que perdeu a capacidade de se comunicar. No meio, três clowns que ora funcionam como um coral grego distorcido para ecoar o estranhamento do cineasta para com um lugar com o qual ele parece não ter intimidade, ora um conjunto de caricaturas que parece universal. Esses três personagens ajudam a dar corpo à história de Ye-ri, uma mulher que, talvez como o diretor, parece ter desistido de buscar certezas e empurra a vida do jeito que dá, mas sem colocar um pesar no modus operandi que escolheu por enquanto. A opção pelo preto-e-branco, à primeira vista, parecia um fetiche de estilização, mas termina por se justificar porque o filme parece operar num universo à parte, onde a comédia física, o nonsense e uma melancolia sem afetação convivem numa harmonia esquisita e cheia de pequenas complexidades – é uma espécie de filme perdido do Jim Jarmusch dos anos 80: sabe rir de si mesmo o tempo todo, sem nunca deixar de levar a sério. É um equilíbrio tão complicado de se conseguir que talvez seja um filme para se ver mais duas ou três vezes e, ainda assim, é capaz de não conseguir se dar conta de suas tantas micro-ambições.

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[Chun-mong, Lu Zhang, 2016]

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