O que acontece quando a parcela conservadora de uma população se vê ameaçada pela ascensão de quem não é do grupo? Movida por um estado de espírito tradicionalista, esta parcela conservadora decide derrubar anos de uma movimentação em prol do social, de conquistas de minorias, de correções de erros históricos e de um olhar mais atento para os marginalizados e, sob o pretexto de um grande retorno aos “velhos tempos”, resolve retomar as rédeas do terreno que ela sempre administrou de acordo com seus interesses. Para isso, elege como seu representante máximo naquele ano quem reprisa estes ideais conservadores e finge falar para todos os cidadãos de bem. Ou seja, ela elege Green Book.

Nos últimos tempos, o Oscar mudou de mãos. Em quatro dos últimos cinco anos, o principal vencedor do Spirit, o prêmio maior dos independentes, também ganhou o Oscar de melhor filme. Três mexicanos ganharam o Oscar de melhor direção em cinco oportunidades num período de seis anos. A Academia se abriu a filmes estrangeiros, temáticas sociais e novos formatos. O reinado dos grandes estúdios parecia encerrado pelo menos no palco do Oscar. Cada vez mais, ousadia formal, relevância histórica e temas espinhosos ganhavam espaço, indicações e prêmios. O maior símbolo da indústria de cinema americana estava entregue a outras pessoas. Hollywood estava transformada e ficou transtornada com isso.

Este ano foi a gota d’água. Não bastasse o filme mais premiado do ano ser em espanhol, ele ainda era da Netflix, enxergada por uma grande parte do grupo mais tradicionalista deste negócio como o fim da indústria. Roma representava, de uma certa maneira, a falência do grande cinema americano, apesar de muita gente concordar que Roma também era grande cinema. Impossível ignorar o longa que colecionou elogios, devorou todos os prêmios dos críticos e, talvez o motivo mais forte, que estava lá disponível para ser visto em casa por todo mundo e qualquer um a qualquer hora. Roma era o inimigo a ser abatido, mas não dava para se posicionar tão frontalmente contra ele, afinal, ele realmente poderia representar o futuro.

A questão passou a ser: se não Roma, qual seria o filme do ano? A primeira providência foi eliminar os indies porque, se a ideia era reforçar a indústria, os filmes independentes também não seriam o caminho certo. Nessa leva, os elogios não foram suficientes para que First Reformed, Oitava Série, Sem Rastros, Você Nunca Esteve Realmente Aqui, Ponto Cego e O Ódio que Você Semeia e até Se a Rua Beale Falasse fossem considerados para a missão (e muitos dos filmes dirigidos por mulheres e negros saíram da disputa). O Primeiro Homem foi um dos primeiros favoritos, mas o filme de Damien Chazelle não foi o sucesso que se esperava. Afinal, que produto da indústria poderia ser a opção contra o avanço do inimigo?

Por um tempo, o candidato mais cotado era a nova versão de Nasce uma Estrela, que foi um sucesso de crítica e de bilheteria, trazia uma das mulheres mais populares do planeta, um ator convertido em diretor (o que já rendeu Oscars para Kevin Costner e Mel Gibson, entre outros), e também se filiava a uma tradição hollywoodiana. Mas o filme começou a morrer na praia dos prêmios prévios e sua derrota no Globo de Ouro sepultou suas chances. Perdeu para Bohemian Rhapsody, a biografia do Queen, igualmente popular, que fez todo mundo cantar junto, mas que foi mal recebido pela crítica e tinha um diretor acusado de assédio que foi afastado do projeto.

Existia buzz favorável a Infiltrado na Klan e ele representaria bem um cinema mais associado à tradição (no sentido de ser de um diretor importante, relevante, experiente) num ano em que a temática racial estava tão em voga, mas, convenhamos, um filme de Spike Lee não é exatamente o que se quer quando o que está em jogo é conservadorismo. Talvez por isso, mesmo com o prêmio do Sindicato dos Atores, Pantera Negra, que cresceu muito na disputa, poderia ser uma aposta ainda mais radical da Academia – mais ainda que Roma. Vice chegou tarde na temporada e sem a força e o apoio necessário e, mais uma vez, com um olhar progressista demais para um republicano. E A Favorita era um filme sobre três mulheres, dirigido por um doidinho grego. Não era o caso.

E aí a parcela mais conservadora da Academia, vendo suas opções rarearem e a ameaça do inimigo cada vez mais possível, tomou a pior decisão possível: ignorou todo o rastro de polêmica de Green Book, de tweet pró-Trump e anti-árabe do roteirista até uma reação muito contrária da família do personagem de Mahershala Ali que disse que aquela história “não foi bem assim”, passando pelas acusações de que era um filme sobre a questão do preconceito feito por brancos e para um público branco, onde o personagem branco, racista, é “quem ensina ao negro que é legal ser negro”. Mesmo sem o diretor indicado, Green Book, o filme sobre dois homens dentro de um carro, que vende o branco como protagonista e o negro como coadjuvante, que se baseia numa visão simplória da questão do racismo, o filme conciliador, conformista, apaziguador, supostamente politizado quando faz exatamente o contrário, ganha o Oscar de melhor filme.

Não importa se Roma ganhou três prêmios, se Pantera Negra também levou em três categorias, se Spike Lee recebeu seu primeiro Oscar pelo roteiro de Infiltrado na Klan, se Olivia Colman derrubou a tradição do Oscar de conjunto da obra e deixou Glenn Close a ver navios. A vitória de Green Book na categoria principal do Oscar mostra que, por mais que tenha recrutado novos membros (2,5 mil em três anos), que tenha se aberto para muitas coisas nos últimos anos, a Academia esperava a oportunidade para mostrar quem manda, para mostrar o que é: conservadora, retrógrada, moralista e convencional. Em vez da chance única de derrubar o muros do preconceito, o Oscar ajudou a colocar mais um tijolo por lá. Esse vai um daqueles Oscars para se lembrar envergonhado.

Lembrei disto aqui: https://filmesdochico.com.br/oscar-2006-o-bom-o-mau-que-feio/

Comentei o Oscar na CBN com a Tatiana Vasconcellos, a Flavia Guerra e o Tiago Belotti. Dá pra ver a transmissão na íntegra aqui:

Tatiana Vasconcellos e convidados apresentam a transmissão do Oscar 2019. Acompanhe ao vivo!

Posted by CBN on Sunday, February 24, 2019

Comentários

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2 comentários sobre “Oscar 2019: a Academia mostra sua verdadeira cara”

  1. Chico vou colocar esse texto no Face. Você escreveu tudo que eu pensei e não consegui colocar no papel. Também fiquei indignado e olha que gosto muito de Peter Farrelly. Torci por ele antes de ver o filme e depois que vi achei uma porcaria. Se o prêmio de roteiro já tinha me indignado o de melhor filme, então…

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