O próximo passo do cinema de Sérgio Bianchi talvez seja o da metalinguagem. Um dos intertítulos de Quanto Vale ou é por Quilo? é “A Denúncia como Negócio”. Seria uma extensão natural de seu cinema tão socialmente engajado, tão sarcasticamente questionador se ele mesmo colocasse em cheque tudo o que ele fez até hoje. Mas infelizmente o tempo do verbo ainda é seria porque Bianchi não parece muito disposto a ressaltar os maiores deméritos de sua obra. O novo filme do diretor se leva muito a sério mesmo com tom de farsa que adota o tempo todo para tecer sua crítica ao terceiro setor, em primeiro plano, e à sociedade brasileira, num objetivo mais ambicioso.
Sim, Bianchi não gosta muito do Brasil. Para ele, o país se enveredou por um caminho de inversão de valores do qual ninguém escapa, que está intrinsecamente ligado à cultura brasileira. Desde o tempo em que a história ainda engatinhava na civilização instalada no Brasil, a corrupção e suas conseqüências estão espalhadas por todos os lugares. Bianchi recorre ao Arquivo Nacional para dar densidade a sua denúncia. Como todos os filmes-denúncia que infestam os cinemas hoje em dia, Quanto Vale ou é por Quilo? assume um tom documental para fazer verdade o discurso de seu autor. Não importa o quanto este tom custe o que há de cinematográfico num filme para cinema. Bianchi ergue seu filme numa estrutura de especial televisivo tipo os que mostram o quanto Michael Jackson é pedófilo.
O diretor decide não poupar seu espectador de nada e, para tamanho feito (que implica num certo convencimento do público do quão significativa e importante é seu trabalho), apela para as mesmas táticas que se mostra disposto a rechaçar. Como, por exemplo (há uma lista imensa), quando abusa em imagens que mostram mendigos que vomitam e crianças acorrentadas. Sob a égide do real, o justiceiro Bianchi explora os excluídos na mesma moeda que seu inimigos camuflados, a sociedade brasileira, a elite que corrompe até a professora da escolinha.
Sem conseguir dar muita consistência a uma personagem sequer, o roteiro aposta na pulverização, o que, invariavelmente, reforça a idéia de como o Brasil está contaminado pelos conceitos deformados de ética, justiça, ajuda ao próximo. Há muitos e muitos atores. Muitos atores bons até. Nenhum com um papel decente. Tudo por causa da concepção do texto, que muitas vezes parece saído de candidato derrotado à presidência de diretório acadêmico de curso de comunicação.
Há um patético Herson Capri limpando o paletó quando a velhinha faxineira vem agradecer o emprego, há uma gordinha deslumbrada que sonha com seu futuro alternativo e não pára de arregalar os olhos, há Joana Fomm e Ariclê Perez, duas damas que interpretam duas damas num dos diálogos mais constrangedores do filme, e, por fim, há Lázaro Ramos tentando arrancar alguma densidade do presidiário intelectual engajado que surge para fazer justiça social. Não que o filme de Bianchi seja filho único na última safra do cinema brasileiro, tão preso, tão profundamente dependente de temas que evocam o Cinema Novo, que imprimia a sua feitura a revolução que clamavam seus autores. Qual é mesmo a importância de Amarelo Manga, Contra Todos e Cama de Gato, filmes que gritam, gritam e não sabem muito bem o porquê de estarem gritando?
Em Quanto Vale ou é por Quilo?, não é muito diferente, mas a farsa orquestrada como ópera bufa por Bianchi, que parece ser o primeiro a não acreditar muito no que está dizendo, tem algo de revelador: a “verdade” parece só poder aparecer sob a forma do absurdo. Seria o circo pelo circo, o circo pegando fogo. Não parece ter alguma nobreza em sua altiva denúncia. Mas há uma cena que revela dignidade por parte do diretor. É quando são entregues os computadores numa escola pobre. Depois da inauguração oficial, a molecada invade a sala onde estão os pecês e manda ver nos teclados, monitores e CPUs, empurrando alguns deles no chão. São animais em frente a um brinquedo novo que eles não entendem nem querem entender. Primatas em guerra com a máquina pelo prazer da anarquia. É nessa cena que Bianchi assume que pensa muito parecido com os vilões que seu filme elege. É nessa cena que ele se mostra tão canalha quanto os canalhas que ele quer muito denunciar.
Quanto Vale ou é por Quilo?
[Quanto Vale ou é por Quilo?, Sérgio Bianchi, 2005]
rodapé: vi dois curtas baianos durante o Panorama do Cinema Mundial, que terminou na quinta-feira, em Salvador. Capôra, de Jairo Eleodoro, que tem preocupações ecológicas até inocentes assume uma acertada forma de mistura entre documentário sobre a exploração da Mata Atlântica e ficção sobre a exploração do homem, com câmera digital bastante criativa. Já O Anjo Daltônico, de Fábio Rocha, com muito mais dinheiro, feito em película, com fotografia cuidadosíssima, se perde com tanta propriedade em suas intenções intelectuais (“o sertão é plural”; “quem nunca contou uma mentira não conhece a verdade”) que estraga quase todos os seus méritos.
Difícil mesmo dizer isso.
Eu também precisava rever, mas, pelo que lembro, não é tão diferente deste… O Caetano Veloso odeia (o que não sei se é ponto pro Caetano ou pro Bianchi… Mais provável que seja pro Caetano, mesmo).
Marcelo, sabe que eu pensei em algo assim quando escolhi a foto? O filme é uma merda mesmo.
Eu precisaria rever pra dizer o que eu acho, Diego.
Marcelo, você disse tudo.
Muito bom o texto.
Mas continuo fã de Cronicamente Inviável.
Em tempo: esta foto é ótima. Parece alguém que acabou de ver o filme…
Lembrou muito meu texto, Chico (embora meus comentários sejam bem mais breves _na verdade, foram umas cinco linhas). Também notei o título “A Denúncia como Negócio” e essa perversidade de o Bianchi ser o roto falando do esfarrapapo.
Em suma: não falei?
Valeu, Tobey… Seu texto sobre o filme da Claire Denis me deixou doido pra vê-lo.
Texto excelente!
Yes, yes, yes! Abaixo os filmes fascistas!