Wim Wenders: Desperado ★★★½
idem, Eric Friedler e Campino, 2020

Eleger um personagem tão conhecido e que ocupa um lugar de culto no imaginário do cinema como objeto de um filme pode ser uma escolha cômoda para qualquer documentarista e facilmente o levar aos perigos do excesso de reverência. Por isso, é muito estimulante quando um documentário biográfico não se contenta apenas em contar a história e as passagens mais marcantes da vida de seu personagem como se seguisse uma checklist, mas tenta — com seriedade — interpretá-lo, analisar sua obra, seu método. É exatamente isso que Eric Friedler e Campino fazem em “Wim Wenders, Desperado”, que encerra o É Tudo Verdade. Se o filme atravessa pelos principais momentos da carreira do cineasta de “Paris, Texas”, ele o faz da maneira mais analítica possível, tentando estabelecer tanto o que move Wenders como artista quanto como a liberdade que ele precisa como criador dá contornos mais amplos ao mesmo tempo em que pode enclausurar seus trabalhos. A postura do filme é de admiração, certamente, mas nunca sem um contraponto, seja vindo de terceiros ou das próprias angústias do diretor. A montagem paralela entre as entrevistas dele e de Francis Ford Coppola sobre os problemas nos bastidores de “Hammett” são tão envolventes quanto o papo simples, direto, sem firulas, sobre cinema, memória e identidade com Werner Herzog:

– Nós não tínhamos nada em comum.
– Éramos solitários.
– Mesmo assim sabíamos que precisávamos um do outro.

Dificilmente um filme vai dar conta da complexidade de um personagem, mas “Desperado” segue um dos caminhos mais interessantes para tentar chegar lá.

Boa Noite ★★★
idem, Clarice Saliby, 2019

Existe um paralelo curioso entre o formato encontrado por Clarice Saliby para seu filme e a própria figura de Cid Moreira, o apresentador-locutor mais icônico da TV brasileira. Ao tornar a voz dele, que já foi a mais famosa do país, como a voz única de seu filme, Clarice referencia seu próprio objeto e ressalta sua posição especial na história da televisão por estas bandas. A decisão também ajuda a justificar uma das principais críticas que o documentário pode receber que é a de mostrar um Cid Moreira unilateral, uma espécie de versão oficial do apresentador. Elegendo Cid como fonte única de informações sobre o filme, a diretora reverte as limitações do projeto e transforma “Boa Noite” numa reflexão pessoal, quase um ensaio do jornalista sobre sua própria vida.

Essa perspectiva também permite que o espectador encontre Cid Moreira de uma maneira inédita: à vontade, desglamourizado, consciente de sua própria idade. Somos convidados a entrar na rotina de um homem com, então, 91 anos de uma maneira bastante íntima, o que não apenas reverencia uma carreira de muitas décadas, mas oferece bastidores saborosos por conta de sua vitalidade — é impressionante que ele mesmo opere, ajuste e edite suas narrações no pro tools, por exemplo. A diretora aproveita com bastante inteligência as intervenções e comentários do apresentador nas gravações que faz para o próprio documentário, trazendo algum nível de metalinguagem sobre o trabalho em si já que compara com registros de seu perfeccionismo na gravação de uma chamada para o Fantástico.

O ponto mais alto do documentário, que utiliza fartamente o arquivo da TV Globo, é quando o filme reproduz na íntegra um direito de resposta que Leonel Brizola ganhou na justiça contra a emissora e que teve que ser lido por Cid Moreira no Jornal Nacional. Um texto duro, em que Brizola ataca frontalmente a Globo, se defendendo de acusações feitas dias antes. Escolha ousada — já que a Globo tem participação fundamental no documentário — principalmente porque Cid explica que estratégia adotou para não emprestar seu carisma para um conteúdo que era “ofensivo” para o lugar onde trabalhava. Esse momento dá a “Boa Noite” um novo frescor. Se não passa a limpo todos os aspectos do personagem que se propõe a retratar, Clarice Saliby se aproveita de suas próprias restrições para criar a linguagem de seu documentário e torná-lo mais apetitoso.

Atravessa a Vida ★★★½
idem, João Jardim, 2020

Talvez “Atravessa a Vida” não traga novas discussões ao debate sobre a educação no Brasil, especialmente no Nordeste, mas logo depois dos primeiros depoimentos fica claro que o foco de João Jardim está muito mais em quem são aqueles estudantes e professores (e que histórias eles carregam) do que em discutir o sistema educacional em si. E Jardim, seguindo uma tradição de grandes entrevistadores brasileiros, é extremamente sensível para extrair relatos que se transformam em pequenas confissões desses alunos que, às vésperas do Enem, estão prestes também a encarar as primeiras decisões de sua vida adulta. Momentos delicadíssimos, sérios, muito particulares, que ressignificam os formatos e conceitos de família, dever e missão.

Esse interesse pelo humano dá a esse filme uma beleza rara, algo muito próximo ao que o diretor fez em “Pro Dia Nascer Feliz” quinze anos antes, faz deste um projeto muito especial, muito íntimo e poderoso ao mesmo tempo. Ele encontra personagens incríveis — jovens com raciocínios maduros e profundos sobre como vivem e o que lhes reserva o futuro. Esses testemunhos não apenas ajudam a montar um painel sobre os mecanismos próprios a uma escola pública do interior do país (que funciona talvez mais até pelo investimento afetivo do que o governamental) como mapeia a própria juventude brasileira, aquela que vem de família simples, sem muitos recursos, que será a próxima geração a mover o país. Apesar das perspectivas perversas dos últimos tempos por aqui, se depender das vozes que ouvimos em “Atravessa a Vida”, quase nada está perdido.

A Cordilheira dos Sonhos ★★
La Cordillera de los Sueños, Patricio Guzmán, 2019

Depois de dirigir um documento histórico das proporções dos três capítulos de “A Batalha do Chile”, qualquer cineasta poderia se aposentar e o que é mais louvável em Patricio Guzmán é que ele construiu uma carreira extremamente coerente e concisa em que a ditadura chilena, suas causas e consequências ficaram como objeto principal. “A Cordilheira dos Sonhos” encerra uma trilogia que começou há dez anos e que relaciona a história e a realidade do Chile a algum elemento natural. “Nostalgia da Luz” olhava para o céu, “O Botão de Pérola” para a água; e este novo filme se volta para espinha dorsal do país. Literalmente. A Cordilheira dos Andes é o ponto de partida, de questionamentos e de discussão sobre, mais uma vez, os meandros e as repercussões do regime militar. Se a proposta dos três filmes sintetiza a luta e a ideologia de uma vida, o resultado não é tão efetivo. Os dois primeiros pecam por buscar um tratamento de documento poético que não funciona muito bem e compromete um objeto forte, o massacre dos povos indígenas no sul do país. O pretenso lirismo de Guzmán compromete as conexões e a mensagem fica em torno de soluções um tanto piegas. Neste novo longa, as intenções poéticas são mais dosadas, mas a impressão é de que o tema já foi esgotado. Embora haja momentos de denúncias graves — os trechos da cordilheira privatizados para fins de extração mineral — e se encontre um bom personagem (o documentarista que, ao contrário de Guzmán, ficou no país e registrou os abusos e a resistência à ditadura), a sensação é de que o cineasta está dando voltas em torno de sua temática única.

Os Quatro Paralamas ★★★
idem, Roberto Berliner, 2020

Os Paralamas do Sucesso são o homens-aranha do rock brasileiro, os amigos da vizinhança, os caras normais. Num universo em que cada banda criou uma identidade muito marcada (messiânicos, engraçadinhos, experimentais), o grupo seguiu firme como um coletivo de amigos que faz música e, se isso não ajuda a destacá-los por perfis muitos definidos, empresta a eles, que estão juntos há quase 40 anos, uma aura de intimidade que poucos conseguiram no rock nacional. E é justamente isso que chama atenção neste documentário de Roberto Berliner, o retrato íntimo desse grupo de amigos. O diretor mesmo é um velho conhecido: dirigiu muitos clipes e até outros docs sobre a banda, acompanha o grupo desde sempre. Seu olhar para eles é contaminado de afeto e camaradagem e, por isso, esse projeto, do jeito que é, só poderia ter sido feito por ele.

Se há um excesso de proximidade por conta da relação pessoal com os músicos, há muita espontaneidade no registro destes momentos pessoais. É uma biografia provavelmente completamente autorizada, mas que nunca soa como oficialesca. “Os Quatro Paralamas” contra a trajetória do grupo, da maneira mais cronológica possível, e inclui ao trio principal (Herbert, Bi e Barone) à figura do amigo e empresário José Fortes, que está com os três desde o início. Os registros de shows clássicos e os muitos depoimentos coletados ao longo dos anos se contrapõem a cenas que capturam o cotidiano dos personagens e outras em que eles são forçados a divagar sobre o que os une até hoje. Algumas cenas são tão delicadas que podem até passar despercebidas, como quando Herbert apresenta a então nova composição no violão para a câmera. Ele cantarola a letra de “Saber Amar” e termina perguntando: “são bacanas estas músicas, né?”. Berliner responde: “muito.

Enquanto retrato afetivo, o filme é um grande acerto e como documento de uma história traz muitos momentos especiais e de fácil conexão para o espectador. Principalmente aqueles que acompanharam essa trajetória nos anos 80 e 90. O filme talvez só peque em ir mais a fundo neste registro. O acidente que deixou Herbert Vianna numa cadeira de rodas e que tirou a vida de sua mulher, Lucy, é tratado com muita ponderação, sem entrar em muitos detalhes e valorizando a parceria entre os quatro naquele momento. Mas esta talvez seja a questão: Berliner quis muito mais pintar um retrato íntimo da banda do que decifrar suas complexidades e isso ele faz muito bem. E os Paralamas do Sucesso talvez nem seja o objeto ideal pra ficar apontando “outros lados”.

Meu Querido Supermercado ★★★½
idem, Tali Yankelevich, 2019

Esse primeiro longa de Tali Yankelevich é uma belíssima surpresa porque funciona tanto como experiência estética quanto como retrato de uma comunidade. No caso, os funcionários de um supermercado. É um filme que dá um novo fôlego ao modelo de documentário que explora um determinado lugar para conhecer seus personagens (porque através dos depoimentos deles também se compõe um painel de um lugar). Além de encontrar figuras interessantíssimas, complexas e cheias de histórias saborosas para contar, personagens que são retratados com muita delicadeza e respeito a sua visão de mundo, a composição visual e sonora do filme é extremamente apurada. A trilha ajuda a compor atmosferas diferentes dependendo das intenções narrativas de cada sequência. E a fotografia encontra detalhes e sutilezas, tanto explorando a luz, as cores e os contornos “naturais” do cenário quanto investigando junto com as câmeras de segurança e uma implacável vigilante os movimentos cotidianos daquele espaço. Essa poética da imagem deixa “Meu Querido Supermercado” numa prateleira bem especial.

Mas, afinal, “quem vai salvar o mundo?”:
– Goku!

Outros filmes:

1982 ★★★½ (Lucas Gallo, 2019)
Colectiv ★★★ (Alexander Nanau, 2019)
Ficção Privada ★★★ (Andrés Di Tella, 2019)
Forman vs. Forman ★★★ (Helena Třeštíková, Jakub Hejna, 2019)
Suspensão ★★★ (Simón Uribe Martínez, 2020)

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