Um Animal Amarelo ★★★
idem, Felipe Bragança, 2020

Felipe Bragança não parece em paz. Como muitos brasileiros, o cineasta sentiu bastante as transformações políticas pelas quais o país passou nos últimos anos. E se, por um lado, “Um Animal Amarelo” seria um relato desse incômodo e um pedido de desculpas por não ter se envolvido mais no processo de troca de poder, seu novo filme também registra um movimento particular do diretor, provocado por essa angústia e pelos questionamentos que faz do papel que ocupa hoje enquanto homem e artista. O longa lança um olhar para sua própria formação como ser humano, sua família, suas memórias de infância, junto com um paralelo sobre a formação do Brasil.

“Como é difícil virar um homem, né, cineasta?”, pergunta a narradora, que vai pontuar e analisar cada passo daquela trajetória de “fracasso”. Bragança é bem cruel consigo mesmo e parece querer levar esta ideia até o fim. Olhando para sua obra como diretor, este talvez seja o projeto em que ele mais se coloca na narrativa. É um filme emocional e emocionado em que se expor faz parte da essência do processo criativo. O personagem principal, alter ego que Bragança toma para si, é Fernando, um diretor de cinema “falido”, em crise, mas que só é apresentado dessa maneira no terceiro capítulo de uma estrutura em blocos. Antes, é preciso explicar de onde ele veio e de onde o Brasil veio.

O episódio que abre o longa estabelece um tom histórico, memorial e de fábula e é protagonizado pelo avô do futuro cineasta, Herson Capri numa bela interpretação. Ele é um explorador em busca de uma riqueza que nunca vem escavando a terra, na primeira referência à formação do país (serão várias ao longo do filme, como aquela em que a narradora lembra que o Brasil é fruto de “sequestros e estupros”). O personagem criança, “cineasta mirim”, surge no segundo capítulo que mantém uma negociação com o onírico e com o mágico, numa atmosfera sentimental e carinhosa. Mas esse tom se transforma quando encontramos Fernando já adulto e, mais especificamente, quando ele conhece Luiza.

É quando Higor Campagnaro surge para dar vazão às angústias e incertezas de Bragança enquanto artista e “brasileiro branco, sem origem e identidade”. E esse peso transforma o filme, aos poucos, num projeto de estrutura mais caótica, anárquica — sem abandonar a melancolia e o cinismo — e numa desilusão com o tecido histórico e a realidade imediata. A mistura de tons pode ou não ser uma influência da produtora portuguesa O Som e a Fúria, que coproduz o filme e empresta o cineasta João Nicolau como corroteirista, mas o fato é que, a partir daí, “Um Animal Amarelo” fica esfomeado por respostas. Os fantasmas coloniais que batizam o capítulo inicial parecem soprar de vez no ouvido desse homem, que parte desesperado em busca de sua de sua origem, de sua essência. E aí, como ouvimos na voz de Isabél Zuaa, “o filme não é mais teu; é sobre ti”.

Todos os Mortos ★★★
idem, Marco Dutra e Caetano Gotardo, 2020

Já se passaram onze anos desde que os escravos se tornaram livres, mas Dona Isabel, com sua voz calma quase que escondendo sua irritação, ainda pergunta para a criada Carolina sobre o pão que ela disse estar saboroso: “você comeu?”. Iná já foi “convertida”, mas Maria, freira cuja religiosidade não conseguiu ajudar a irmã que vê fantasmas, pede para ela entoar cânticos africanos que não são os de sua antiga crença.

– Não posso. Ela não é da minha nação.
– Como assim? Vocês seguem as tradições africanas!
– A África é grande!

E a ignorância é maior do que a África. Esse ano já deu, né? Ninguém aguenta mais 1899, vem virada de século! Será que, no futuro, talvez daqui a uns 130 anos, os negros ainda vão ser tratados como serviçais submissos e sua cultura vai ser nivelada por baixo? Teremos que esperar até lá para saber — ou esse futuro é agora, na virada do século XIX para o XX?

Os tempos se confundem em “Todos os Mortos” porque parece que pouca coisa mudou. Marco Dutra e Caetano Gotardo olham a seu redor e enxergam São Paulo como uma infinita repercussão de heranças distorcida, um looping maldito a que estamos todos condenados como sociedade e que provoca fantasmas que assombram a população negra e que determinam, até hoje, o espaço que lhe é destinado.

– Ouve, nenhuma respiração.
– Eles morreram, eles não respiram.

O que talvez falte ao filme é justamente o espaço para que este respiro aconteça. Por mais que os lados estejam bastante definidos, “Todos os Mortos” ainda é sobre como uma família branca, decadente e mesquinha enxerga um mundo em transição. Talvez seja a escolha mais adequada já que a dupla de cineasta é muito respeitosa em não tentar invadir o ponto de vista dos personagens negros. Isso os protege, mas também os esconde na trama, por mais que haja alguns momentos de enfrentamento e outros de delicadeza, com um piquenique de reconciliação familiar com vista para o futuro.

Os problemas de som na transmissão do Canal Brasil tiraram um pouco do brilho de um projeto cuidadoso, sobretudo na parte musical, que sempre é um dos pilares dos filmes dos diretores, mas não atropelaram alguns de seus pontos fortes. É um longa dirigido por homens entregue a um elenco quase que completamente feminino, o que adiciona uma nova discussão: as duas famílias do filme foram, de certa forma, abandonadas pelos “homens da casa” e tiveram que se reinventar e sobreviver num mundo em ebulição. A falência do sistema patriarcal. É dura a vida em 1900.

Inabitável ★★★★
idem, Enock Carvalho e Matheus Farias, 2020.

Tem umas pequenas delicadezas em “Inabitável” que mostram que este filme está num lugar diferente de outras obras com temática ou intenções parecidas. A discussão sobre transexualidade está um passo adiante. O que está em questão não é aceitação, mas existência. Marilene, Luciana Souza numa das melhores interpretações que eu vi neste ano, nunca deixa de chamar sua filha no feminino. Apresenta a amiga dela, também trans, para sua vizinha como “esta é Juliana, amiga de Roberta” e se despede dela com um “avise quando chegar em casa”. O abraço é livre. O choro nem está em questão. Este curta é um filme de denúncia, mas sua resposta à situação perversa que denuncia não é raivosa e, sim, cheia de amor. Enock Carvalho e Matheus Farias não pedem um lugar no mundo para os excluídos, eles oferecem um mundo novo para quem acha que, por aqui, o negócio está inabitável.

La Frontera ★★★
idem, David David, 2019

O cenário é a fronteira entre Colômbia e Venezuela, mas David David não está interessado necessariamente na política, mas nas pessoas que moram ali e que vivem, literalmente, no limite. “La Frontera”, no entanto, está longe de ser um filme alienado. Numa estratégia bem interessante, o diretor, em seu primeiro longa-metragem, concentra todas as informações de contexto em cenas bem pontuais onde o rádio traz as notícias. Poderia ser um recurso fácil, mas esta escolha permite que ele aponte o foco para os personagens de uma maneira mais crua. O filme é a história de uma família isolada e sua luta para sobreviver num cenário de miséria, pessoas que encontramos já com conceitos morais bem maleáveis por causa destas condições em que vivem. Esse pressuposto, no entanto, abre espaço para acontecimentos trágicos (e as consequências disso) que são onde o filme ganha seus lugares mais comuns, mas que se justificam também justamente pelo recorte. A dinâmica que se estabelece a partir disso não é exatamente original, mas ajuda a desenvolver a personagem de Daylin Vega Moreno, estreando no cinema, e é fundamental para, sem tratar diretamente do assunto, David David fazer um comentário sobre como conjunturas sociais e decisões políticas podem massacrar e cancelar o indivíduo antes que ele tenha uma chance de recomeçar.

El Silenzio del Cazador ★★
idem, Martín Desalvo, 2019

Há uma proposta que nunca se materializa de verdade em “El Silenzio del Cazador”: a trama do filme argentino se estabelece a partir — e por causa — de um acontecimento envolto numa atmosfera um tanto mágica, a chegada de uma onça (que os personagens secundários acreditam ser mitológica) à região onde vivem os protagonistas. Esse estopim provoca uma série de fatos que despertam a rivalidade antiga entre dois dos personagens principais. O problema: apesar do filme partir dessa lógica fabular, ele a abandona completamente quando segue para os protagonistas. Isso cria um conflito sempre que é preciso retornar ao evento inicial. Por mais que a intenção de Martín Desalvo pareça ser comparar a história da onça e a rivalidade dos homens, partindo do animalesco, dos instintos selvagens e do lendário como algo que atravessa os tempos, isso nunca é muito bem resolvido no filme, que não consegue encontrar texturas suficientes para que aquele duelo pareça crível.

Por Que Você Não Chora?
idem, Cibele Amaral, 2020

A impressão que o primeiro longa exibido na mostra competitiva do Festival de Gramado deixa é de um projeto bem intencionado, mas incapaz de tratar com profundidade um assunto dos mais delicados, a saúde mental. A diretora Cibele Amaral deixa claro, já nas primeiras cenas, que o caminho que pretende seguir é o do didatismo, onde todos os diálogos são para explicar para leigos o que é determinada condição emocional e como se deve proceder com os pacientes. As personagens de Cristiana Oliveira, Elisa Lucinda e Maria Paula sempre têm laudos e pareceres médicos sobre o que está acontecendo e resumem situações complexas com lugares comuns como “se você não é neurótico, procure um terapeuta”.

A premissa de “Por Que Você Não Chora?” é bem simples: uma estudante de psicologia que tem várias questões emocionais é destacada para ser a acompanhante terapêutica de uma mulher que tem graves transtornos psicológicos. Essa aproximação, claro, irá criar uma identificação entre as duas. Premissa simples mesmo, até simplória, mas que poderia funcionar dramaticamente caso o roteiro não privilegiasse a personagem de Bárbara Paz, esquecendo da protagonista Carolina Monte Rosa, justamente aquela que deveria ter um impacto emocional com o contato. Quando Bárbara entra em cena, assume o filme para ela e, mesmo com uma interpretação que não escapa muito do clichê, chama bastante a atenção.

Mas mesmo com toda a preocupação em se criar um trabalho referência na questão da saúde emocional, o filme não passa do “respeitoso”. É bem óbvio que a ideia é tratar a questão com seriedade e cuidado, mas o longa não adiciona nada de realmente relevante às discussões sobre um dos assuntos mais em voga hoje em dia e ainda falha no desenvolvimento da personagem principal. Um projeto que se propõe a ser tão didático parece, ele mesmo, não conseguir compreender, ou pelo menos traduzir, a angústia de sua protagonista.

Outros filmes:

longas

Aos Pedaços ★★ (Ruy Guerra, 2020)
Días de Invierno ★★½ (Jaiziel Hernández Máynez, 2020)
Los Fuertes ★★★ (Omar Zúñiga Hidalgo, 2019)
King Kong en Asunción ★★½ (Camilo Cavalcante, 2020)
Matar a un Muerto ★★★ (Hugo Giménez, 2020)
Me Chama que Eu Vou ★★½ (Joana Mariani, 2020)

curtas

4 Bilhões de Infinitos ★★★ (Marco Antônio Pereira, 2020)
Atordoado, Eu Permaneço Atento ★★★ (Henrique Amud, Lucas H. Rossi, 2020)
O Barco e o Rio ★★½ (Bernardo Ale Abinade, 2020)
Blackout ½ (Rossandra Leone, 2020)
Dominique ★★★ (Tatiana Issa, Guto Barra, 2019)
Extratos ★★★ (Sinai Sganzerla, 2020)
Receita de Caranguejo ★★½ (Issis Gabriela da Valenzuela, 2019)
Remoinho ★★½ (Tiago A. Neves, 2020)
Subsolo ★★ (Otto Guerra, Erica Maradona, 2020)
Trincheira ★★★ (Paulo Silver, 2019)
Você tem Olhos Tristes ★★ (Diogo Leite, 2020)
Wander Vi ★★ (Augusto Borges, Nathalya Brum, 2020)

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