A nona edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, um dos mais importantes do país acontece online, no site do festival, por conta da pandemia do novo coronavírus. Cada filme fica disponível por dois períodos de 24 horas (das 6h às 5h59 da manhã). As datas de exibição podem ser conferidas aqui. Cada filme custa R$ 5. Neste post, vou centralizar textos sobre os filmes que integram a programação, que aposta em filmes independentes, ousados e engajados.

Quem preferir pode acessar a lista com os filmes vistos no Letterboxd.

Cabeça de Nêgo ★★★★
idem, Déo Cardoso, 2020

Brasil, 2020. A reação.

“Cabeça de Nêgo” é impressionante. Um filme com uma imensa vontade de potência — que é ação direta e que também é discurso ao mesmo tempo. Se o ponto de partida é um episódio pontual de racismo envolvendo dois estudantes do ensino médio, logo o longa de estreia de Déo Cardoso vira um ataque ao sistema como um todo, uma batalha em campo contra a opressão, movida por uma crescente consciência social por parte do protagonista e de seus colegas. Se é muito prático e muitas vezes didático em suas escolhas, essas decisões são totalmente conscientes e apenas ilustram uma filosofia de posicionamento. Cardoso disse num debate pós-filme que queria que sua obra se comunicasse com o público, encontrasse na juventude indentificação, traduzisse suas angústias e indignações. É particularmente emocionante acompanhar o interesse do jovem protagonista pelos ícones do movimento negro e como cada ensinamento vai encontrando lugar na prática. O engajamento surgindo como consequência e estimulado pela informação. Um recado muito básico, muito necessário, que com um elenco comprometido com a luta funciona muito bem. Outro momento impressionante — e onde Cardoso demonstra muita habilidade — é a sequência final, de ação, envolvendo uma série de elementos, muitos atores e o clímax do projeto em si. Orquestrar tudo aquilo não é simples e o resultado é bem seguro. Este é só o primeiro longa do diretor, mas sua inexperiência é recompensada pelo frescor de ideias e pela vontade. Coisa boas devem vir pela frente. A comparação mais óbvia é com a energia do cinema de Spike Lee, que traz tanto a fúria da reação quanto a discussão sobre fundamentos, mas o cineasta cearense conseguiu transportar ambas para uma realidade brasileira, nordestina. É, além de tudo, um filme sotaque, orgulhoso disso.

Canto dos Ossos ★★★
idem, Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020

“Canto dos Ossos” é fantasmagórico. E não apenas por causa do encontro que ele proporciona com seres sobrenaturais, mas pela própria linguagem que estabelece: etérea, desconstruída, sensorial. O filme de Jorge Polo e Petrus de Bairros parece indicar um novo movimento no cinema de horror brasileiro, reconfigurando elementos do cinema marginal, do terror de baixo custo e do “filme de atmosfera”, se é que este conceito existe. Tentando construir algo realmente novo. O interesse por esta atmosfera parece estar num patamar superior ao da própria narrativa em si, que parece propositadamente desordenada, cheia de campo abertos a múltiplas interpretações. É um filme que se comunica muito mais por estímulos do que por mensagens, que pouco tem de concreto e que mergulha nesse mistério como impulso para si próprio. Essas características são o que o filme tem de mais sedutor, mas também escondem suas fragilidades: há um discurso propriamente dito ou apenas uma tentativa? Muitas vezes os diretores parecem fazer algumas observações sobre a juventude que vive à margem, no interior do Nordeste, na periferia de Búzios, uma juventude que talvez encontre numa imortalidade caótica a chance de sobreviver a um país que a vampiriza e talvez aguardar por um próximo momento. Talvez este não seja um filme para agora.

Cavalo ★★★
idem, Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, 2020

Maceió é conhecida por seu mar azul, mas estas não são as únicas águas que banham a cidade. A lagoa Mundaú limita um lado escondido da capital. Suas margens dão o contorno à periferia da parte baixa de Maceió, uma população pobre que, em grande parte, sobrevive do sururu, um molusco que vive na lama da lagoa. O sururu é o prato mais típico da culinária alagoana, o alimento principal dos pescadores que moram à beira da Mundaú e, assim como o mangue onde é encontrado, faz parte da identidade cultural do alagoano. É no mangue que começa “Cavalo”, na lama.

As primeiras imagens do filme remetem ao mito do surgimento do homem, segundo o candomblé, pelas mãos do orixá Nanã. Atores nas águas do mangue dançam, encenando o momento de criação. Alagoas, o homem, a religião e a dança. O longa de Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti concentra todos os aspectos de seu filme na cena inicial. Ou quase todos. “Cavalo” também é sobre o processo, o mecanismo que conecta todos estes elementos, que os diretores resolvem trazer para o primeiro plano, desnudando parcialmente suas intenções e estratégias. Parcialmente porque a relação entre o bastidor e o mágico atravessa todo o filme.

Os bastidores aparecem nas cenas onde um grupo de dançarinos ocupa um palcos e salões com movimentos fortes que muitas vezes parecem fazer referência aos movimentos do candomblé. Em determinada cena do filme, um deles explica o que caracteriza esses movimentos na religião: o uso da força das pernas, a imponência, segurança. Cavalo. O balé no filme assume um tom ritualístico que não apenas reverencia o corpo como o apresenta como canal para a manifestação de uma religiosidade. Instrumento de fé. De resiliência, de um povo em busca de suas origens.

Se o homem nasceu em Alagoas, o homem nasceu negro. E negros são os sete protagonistas do filme que, cada uma a sua maneira, parecem procurar sua conexão mais íntima com sua etnia, seja na religião, na lama do mangue, na cultura hip hop, na própria história de luta de uma população. Se o pai de santo, pela voz de uma entidade, canta “sou de Alagoas”, o rapper faz rimas que lembram que sua identidade está associada à geografia e o professor pede para que os jovens se espelhem nos personagens que simbolizam essa luta. O estado é a terra de Zumbi, de Dandara e do Quilombo dos Palmares.

São muitos os aspectos que o filme aborda e, mesmo que os diretores tentem alinhavá-los através da consciência de que o corpo é o espaço sagrado para guardar e equilibrar todos eles, nem sempre esse equilíbrio parece completamente consistente. O tempo dedicado aos bastidores às vezes parece entrar em conflito com os elementos mágicos ou sobrenaturais que permeiam o filme. O que apazigua as coisas é que ao trazer o debate sobre o formato de documentário híbrido para um diálogo entre dois personagens, onde um deles encarna a dualidade de interpretar um orixá mulher, o próprio filme parece reconhecer seu conflito.

Outro ponto controverso é uma cena de dança trilhada com o clássico indie “Svefn-g-englar”, dos islandedeses do Sigur Rós, que apesar de talvez trazer a atmosfera quase transcendental e intimista que o momento pede, parece quebrar a unidade sonora do filme, que é basicamente formada por música negra, dos cânticos de louvor ao hip hop. E essa embalagem sonora faz sentido com a proposta de retratar o reencontro dos dançarinos-personagens com sua ancestralidade. Essa busca rende ao filme alguns dos momentos mais plasticamente bonitos do ano. “Cavalo” tem, sem dúvida, um dos mais belos trabalhos de fotografia de 2020.

É estimulante que um filme que vem de um estado com pouquíssima tradição no cinema tenha um apuro estético e sonoro tão impecável para além da riqueza temática que carrega. Se “Cavalo” começa no mangue e termina na chuva, com seus personagens buscando a água para se conectar com suas origens, estas mesmas águas parecem, através deste longa-metragem, benzer o nascimento de um novo cinema alagoano, coroando um processo que vem sendo construído ao longo da última década com uma produção crescente de curtas-metragens.

O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels ★★★½
idem, Tiago Carvalho, 2020

O trabalho de pesquisa no filme de Tiago Carvalho é realmente notável, tanto na recuperação da gravação do áudio de Noel Nutels quanto na fartura de registros de arquivo das populações indígenas e da ação do homem branco em seu habitat. Mas o grande mérito aqui é como o diretor conecta as duas coisas e estabelece um discurso político forte, preciso e atualíssimo, mesmo que a base seja o pensamento do médico indigenista registrada em 1968, quando muitos dos conceitos que temos hoje em relação ao meio ambiente e ao tratamento para com a população nativa brasileira ainda eram muito pontuais. “Ao lado de matar intencionalmente, matou-se também com ‘boas intenções'”, defendeu o médico num depoimento há mais de 50 anos. Carvalho acerta ao emprestar um tom de filme de terror a determinados momentos do filme, como quando as imagens crianças nativas participando de brincadeiras guiadas por freiras e destaca trechos da fala de Nutels, que não poupa a Igreja Católica em relação ao massacre cultural dos povos indígenas: “a técnica catequética consiste em abalar a estrutura daquela gente e incutir a noção de pecado que eles não tinham”. As cenas rodadas na aldeia dos Pacaás Novos, que o indigenista compara com o Nazismo são o registro mais cruel da agonia de um povo. “O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” é um filme essencial para a memória brasileira.

Los Lobos ★★★
idem, Samuel Kishi Leopo, 2019

O tema da imigração — e, com ele, o do desgarre — já foi intensamente explorado pelo cinema mexicano. A fronteira com os Estados Unidos e a chance de “uma nova vida” rendeu inúmeros filmes que exploram vários aspectos do processo de desenraizamento. Nesse sentido, “Los Lobos” não é muito original em sua abordagem. Sua eficiência no material humano. O longa de Samuel Kishi nos apresenta a uma mãe e seus dois filhos pequenos que acabaram de chegar ao, olha a ironia, Novo México e buscam um lugar para ficar. A primeira cena já estabelece sua invisibilidade perante um cenário novo onde eles terão que “provar que merecem ficar”. Uma família que não existe ali e da qual nós, espectadores, não conhecemos praticamente nada. Kishi não está interessado em explicar o que aconteceu com o pai dos garotos ou porque aquela mulher fugiu de onde morava. O foco é o estranhamento, o isolamento e o processo de reconstrução. Em boa parte das cenas, os dois meninos, irmãos na vida real, estão sozinhos no apartamento enquanto a mãe trabalha. Eles sonham em conhecer a Disney, mas enquanto isso confeccionam um universo próprio que serve de refúgio e de motor. Os pequenos atores, adoráveis, protagonizam momentos sensíveis. São a alma de um filme que abre espaço para que eles existam no meio de um ambiente árido onde os afetos são raridade.

Luz nos Trópicos ★★★★
idem, Paula Gaitán, 2020

Um homem de origem indígena que caminha, com o olhar fixo, em direção à câmera protegido do gelo que o cerca por um casaco pesado. Uma imagem que, se não traduz, simboliza muito da complexidade de “Luz nos Trópicos”, uma odisseia sensitiva e espiritual pelo coração da selva, seja ela qual for, em busca da conexão mais primal com os conceitos de origem e identidade. Dos rios do pantanal mato-grossense aos que desenham Nova York, é o caminho da água que leva à terra, ao princípio do homem, ao fundamento da América. Se parte da jornada de Kuikuro em busca de sua ancestralidade, aos poucos o filme de Paula Gaitán se abre para investigar todas as inferências que ajudaram a construir o continente, ou os continentes já que o longa-metragem fala muitas línguas, embora a que ele nunca abandone seja a do cinema. Nas mais de quatro horas deste filme, há mais momentos de beleza cinematográfica do que se possa descrever. Muitos deles são proporcionados pela fotografia de Pedro Urbano, que desbrava a floresta apaixonado e encontra instantes mágicos como o plano em que enquadra os barcos que descem o rio e uma árvore imensa repleta de aves, mas a maioria destes momentos é fruto da atmosfera construída pela diretora, que compõe uma peça em que tempo, espaço, imagem e som encontram uma melodia comum entre discurso político, o mistério antropológico e a capacidade de deixar que cada experiência no campo do sensorial.

A Metamorfose dos Pássaros ★★★★
idem, Catarina Vasconcelos, 2020

São raríssimos os filmes em que as palavras comungam com as imagens da mesma maneira que em “A Metamorfose dos Pássaros”. Para cada memória que o filme reconstrói em pequenas cartas e mensagens entre os membros de uma família, Catarina Vasconcelos encontra uma tradução visual, confeccionando uma poética sofisticada que espelha temas complexos como amor, distância, maternidade. A realizadora portuguesa resgata a própria ancestralidade numa investigação afetuosa sobre a história de sua avó pelos olhos de seu pai.

Mas o que se apresenta meramente como a reconstrução de uma biografia logo se transforma numa reflexão muito pessoal já que Catarina e o pai, Jacinto, ocupam o mesmo lugar num relato sobre o luto. Ambos convivem com os fantasmas deixados pelas perdas de suas mães. Num movimento delicado e extremamente íntimo, a cineasta se apropria do vazio que Jacinto carrega apenas para se ver refletida nele — e, dessa forma, resgatar sua relação com a mãe e se aproximar de seu pai. Uma costura tão rebuscada quanto fascinante principalmente por causa de suas escolhas.

Combinando as vozes de seus familiares com as de seus colegas atores e diretores num filme que é completamente estruturado a partir do voice over, a cineasta deixa explícita mais uma camada de seu projeto. Seu documento poético, um ensaio sobre a passagem do tempo em forma de livro de memórias, é também sobre cinema.

– “Você agora faz filmes?”, pergunta o pai.
– “Bem, eu estou fazendo este”, ela responde.

Cada decisão aqui é projetada, extremamente planejada, resultado de um longo trabalho de construção — e inesperadamente singela e sincera. E se Catarina Vasconcelos encontrou a poesia em seu primeiro longa-metragem, o que esperar do que virá a seguir?

A Morte Branca do Feiticeiro Negro ★★★★
idem, Rodrigo Ribeiro, 2020

Um experiência estética quase espiritual. As memórias de um cárcere em imagens e nas últimas palavras de um homem incapaz de escapar do passado que o impuseram e do qual não conseguiu se livrar — mesmo livre. Em cerca de dez minutos, Rodrigo Ribeiro, com extrema sensibilidade e um apuro visual e sonoro impressionante, encontra numa carta de despedida uma maneira de resgatar uma vida negada que reverbera muitas outras, reconstruir uma época de crueldade e refletir sobre a condenação de toda uma etnia ao peso de uma herança de horror. O título do filme, A Morte Branca do Feiticeiro Negro, é o mesmo do livro de Renato Ortiz que estuda o que o negro livre precisou sacrificar para encontrar um lugar na sociedade brasileira.

Nardjes A. ★★
idem, Karim Aïnouz, 2020

A escolha da jovem Nardjes como protagonista de um filme sobre os protestos populares na Argélia para impedir o quinto mandato de seu presidente é bem curiosa. A ativista não não representa a liderança do movimento nem tem um papel fundamental na articulação. Karim Aïnouz parece ter a intenção de assumir um papel de agente infiltrado nas manifestações, de mostrar aquilo por dentro. Nardjes, apesar de ter um histórico familiar de ativismo político, representaria, então, o homem comum que ocupa as ruas. Funciona durante um tempo. O problema é que, quando fica claro que ela é apenas uma pessoa gritando palavras de ordem, o que deveria ser universal se confunde com genérico. Em vez de pontuar a narrativa, ela vira um adorno já que o diretor quer mesmo é mostrar a intensidade do clamor popular — em cores e texturas diferentes. O efeito é contraditório.

Oroslan ★★★
idem, Matjaž Ivanišin, 2019

Oroslan está morto. Vida longa a Oroslan. Em seu último filme, o esloveno Matjaž Ivanišin faz uma pequena reflexão sobre o que sobrevive de alguém depois que esta pessoa morre e sobre a forma como essa sobrevida se dá. Como um ator quase invisível, o diretor observa diálogos sobre o personagem-título, um homem idoso que acabou de ser encontrado morto, ou ouve pessoas que conviveram com ele. Esses bate-papos ajudam não apenas a reconstruir quem era aquele homem, mas servem como uma observação sobre como uma história se eterniza em memórias que se organizam em uma ou várias histórias. Em “Playing Men”, o diretor investigava como os jogos metaforizam nossa maneira de lidar com a vida, de prosseguir. Neste filme, o jogo acabou para o Oroslan. O que fica? De uma maneira bastante singela, celebrando a vida e morte de um protagonista que não está mais lá, Ivanišin reflete sobre a própria construção das narrativas. Baseado numa história curta chamada “E Foi Exatamente Assim”, cada novo depoimento aqui conta um conto e aumenta um ponto.

Pajeú ★★★
idem, Pedro Diógenes, 2020

A realidade como um filme de horror onde os monstros te olham nos olhos. Pedro Diógenes, um dos dois responsáveis por “Inferrninho”, volta a usar a fantasia para falar sobre as angústias que transfere para sua protagonista. Ele quer saber porque o riacho Pajeú, que foi cantado até por Luiz Gonzaga e cujas margens serviram de semente para o nascimento de Fortaleza, morreu, ou pior, virou um canal poluído e sem vida. Maristela passa a ser assombrada por este fantasma que ronda a capital do Ceará. Sua aflição vira dor física e a cura é a denúncia. A partir da agonia que divide com sua personagem, Diógenes se lança numa investigação prática e metafísica: onde o rio foi parar geográfica e espiritualmente? Sua missão é descobrir por onde ele corre e onde ele está na memória dos moradores da cidade. Entre a ficção e o documentário, “Pajeú” se arma do gênero.

Responsabilidade Empresarial ★★★
Responsabilidad Empresarial, Jonathan Perel, 2020

Os planos são fixos. Os movimentos só existem quando acontecem dentro de cada quadro. Jonathan Perel estaciona seu carro em frente a diversas empresas que tem sedes ou fábricas na Argentina e começa a listar como cada uma delas denunciou, sequestrou ou manteve em cativeiro seus funcionários com algum papel político durante a ditadura militar no país. É um registro detalhado destas atrocidades que a narração pacífica e clínica de Perel deixam ainda mais cruéis. Ao mesmo tempo em que reforça a denúncia, saída de um relatório do governo de décadas depois, o formato muito fechado tem suas limitações, mas nada que impeça o cineasta de dar um movo sentido a “apontar o dedo na cara”.

Sertânia ★★★★
idem, Geraldo Sarno, 2019

A sequência final de “Sertânia”, que abre mais uma perspectiva num filme de tantas e tão múltiplas potências, me ajudou a chegar a uma conclusão sobre minha experiência com o filme de Geraldo Sarno. Aos 81 anos, este diretor celebrado com tanta discrição pelo cinema brasileiro parece dizer que “não acabou”. Ele continua, seu cinema continua e, mais do que tudo, suas questões, seu Nordeste, continuam. Chamar este filme de faroeste revisionista talvez limite a obra a apenas um dos campos em que ela opera simbolica e praticamente. Certamente “Sertânia” é renovador sob muitos aspectos, mas também certamente bebe de fontes das mais clássicas sob outros. Se é direto em suas cenas de ação, sua montagem ágil, sua releitura cinemanovista, é rebuscado e cheio de requintes na referência óbvia a Guimarães Rosa, aquele mais soube poetizar o Sertão sem que dele retirasse suas características mais violentas. Sarno reapresenta o Sertão de Rosa para os novos tempos e ao mesmo reapresenta seu Sertão, o Sertão para o qual nos convidou em “Viramundo”, seu primeiro filme, sua obra-prima até então. “Sertânia”, embora se banhe em todas estas fontes sofisticadas não busca a beleza como mostra em seu branco estourado que deforma a luz do sol e evita os lugares comuns da fotografia sertaneja. Seu projeto estético é outro. Sarno recorre a Nelson Pereira para criar essa moldura quase espiritual para seu protagonista na jornada que lhe resta. Invade o místico com a mesma naturalidade com que um barco atravessa o rio. Atravessa esses limites tão tênues na concepção religiosa nordestina e incorpora essa discussão a um filme que já funde tantas visões e interpretações do cangaço, do Sertão, do Nordeste. Geraldo Sarno não busca a beleza, mas a encontra em cada minuto deste épico/antiépico barroco com que nos presenteia.

O Tango do Viúvo e Seu Espelho Deformador ★★★½
El Tango del Viudo y su Espejo Deformante, Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento, 1967/2020

Voltar ao passado para seguir em frente. Uma lógica que existe por dentro e por fora do projeto de “O Tango do Viúvo e Seu Espelho Deformador”, de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento. Um filme tanto de 1967, do começo da carreira do cineasta chileno, quanto de 2020, uma época em que a diretora se dedica a resgatar trabalhos inacabados do marido. Se no filme pensado por Ruiz, “voltar” para o personagem principal significaria reconstruir, reestabelecer, reposicionar uma relação com o luto (pelo viés do surreal e do psicológico), a versão de Sarmiento leva esse tema para um outro patamar. Ela recupera os originais desse filme, nunca acabado, que estavam mudos por causa da falta de recursos para a finalização de som, restaura o filme a partir da leitura labial e de expressões corporais, recriando o projeto e reestabelecendo, por sua vez, sua própria relação com a ausência do marido, num paralelo curioso com o que acontece com o personagem principal do longa concebido por Ruiz.

Vento Seco ★★★½
idem, Daniel Nolasco, 2020

Um filme de guerrilha. A produção cinematográfica brasileira recente tem dado muitos e diferentes exemplos de “cinema de guerrilha” e este último longa de Daniel Nolasco é um dos mais contundentes. “Vento Seco” não é apenas ousado e provocador, adjetivos normalmente associados a obras que fogem do tradicional e desafiam a moral estabelecida ao tocar e expor tabus. É um trabalho que olha com seriedade — mas sem perder a ironia — para seu objeto e encontra um campo entre o real e a fantasia para falar com propriedade sobre liberdade e desejo.

Os caminhos da sexualidade humana são extremamente complexos. Especialmente os da sexualidade gay, aquela que nasce proibida e se constrói secreta, vivendo do proibido, como a do protagonista deste filme. E é muito simplificador classificar como perversão tudo aquilo que escapa à tradição. Nolasco, cuja obra sempre navegou estas marés, nunca tinha chegado a um resultado tão sóbrio e profundo em sua análise sobre a maneira que um homem encontra para materializar e saciar seu desejo. E faz isso alimentando um olhar fetichista, entendendo que isso não macula o jogo erótico.

Apesar de partir do que parecem ser variações tropicais do universo gourmetizado por Tom of Finland, o diretor constrói um personagem principal multifacetado que a performance corajosa de Leandro Faria afasta do lugar comum. Um homem de poucas palavras, solitário, sisudo no trabalho e em sua relação com o mundo, mas que é extremamente carinhoso com sua melhor amiga, papel da atriz trans Renata Carvalho, ótima, e que é totalmente movido por seus instintos quando o assunto é sua sexualidade. Uma sexualidade que muitas vezes vai para o explícito sem qualquer pudor como extensão natural do desejo do personagem.

Nada é básico, nada é uma coisa só em “Vento Seco”. Chega a ser surpreendente que um filme que tem um plano de ação tão evidente — vide o esforço em estabelecer uma linguagem visual específica para os momentos em que flerta com a fantasia — consiga falar com tanta liberdade e propriedade sobre algo tão pouco palpável e tão envolto em mitologias quanto a sexualidade humana. Essa liberdade, essa permissividade permitida, é a principal arma de Nolasco. E isso talvez seja o maior mérito do filme: se posicionar, ocupar espaços, chamar atenção para si e para seu objeto por mais perturbador que ele possa parecer.

Mr. Leather ★★½
idem, Daniel Nolasco, 2019

As ficções de Daniel Nolasco são extremamente diretas e mergulham sem amarras no estudo do desejo, pulverizando códigos e convenções. Por isso, é interessante que seu documentário sobre o universo do leather, a cultura de amor ao couro, e suas várias ramificações parece apenas um passeio inofensivo por um mundo pitoresco. Se o filme tenta desmistificar essas práticas tão idealizadas entrevistando personagens completamente diferentes entre si, o fato de ser pontuado pelos bastidores do concurso do novo Mister Leather Brasil parece nunca traduzir a complexidade deste microcosmo, principalmente quando tergiversa para detalhes como o depoimento em que um dos frequentadores critica o clube dedicado a este público.

Yãmĩyhex: As Mulheres-Espírito ★★★
idem, Sueli e Isael Maxakali, 2020

O poder do mito. E este mito aplicado à vida cotidiana. “Yãmĩyhex: As Mulheres-Espírito” é um passaporte para um mundo ainda tão misterioso por causa desta dificuldade humana em dar atenção para o que está além do próprio umbigo. Sueli e Isael Maxakali filmam suas próprias tradições, referenciando suas mitologias, sem dar muitas explicações. Dois cineastas de origem indígena contando um pouco de sua história, mostrando, com suas próprias conveniências, de onde vieram. Se há o desejo por documentar, deixar registrada sua própria história, há também o fascínio pela encenação. E nem importa tanto o fato de que nem todos os códigos dos rituais e da narrativa própria narrativa. A viagem em si já é mágica o suficiente.

Mais filmes comentados:

Um Animal Amarelo (texto aqui) ★★★, Felipe Bragança
Inabitável (texto aqui) ★★★★, Enock Carvalho e Matheus Farias

Outros longas vistos:

Agora ★½, Déa Ferraz
A Alma do Gesto ★★, Eduardo Baggio, Juslaine Abreu-Nogueira
O Ano do Descobrimento ★★★½, Luis López Carrasco
Los Conductos ★★★, Camilo Restrepo
Crônica do Espaço ★★★, Akshay Indikar
Fakir, Helena Ignèz
Um Filme Dramático ★★★, Eric Baudelaire
A Flecha e a Farda ★★★, Miguel Antunes Ramos
Longa Noite ★★★½, Eloy Enciso
Nasir ★★½, Arun Karthick
Para Onde Voam as Feiticeiras ★★★, Carla Caffé, Eliane Caffé e Beto Amaral
Paulistas ★★½, Daniel Nolasco
O Que Resta / Revisitado ★★½, Clarissa Thieme
Quem Tem Medo de Ideologia? ★★★, Marwa Arsanios
O Reflexo do Lago ★★, Fernando Segtowick
Traverser (Após a Travessia) ★★★, Joël Akafou
Victoria ★★★½, Liesbeth De Ceulaer, Sofie Benoot e Isabelle Tollenaere

Outros curtas vistos:

Algo-Rhythm ★★★, Directed by Manu Luksch
Alien ★★★, Yeon Je-gwang
Chão de Rua ★★★, Tomás von der Osten
Enraizadas ★★, Juliana Nascimento e Gabriele Roza
El Mártir ★★½, Fernando Pomares
Manual do Zueiro Sem Noção ★★½, Joacélio Batista
Mãtãnãg, a Encantada ★★★, Shawara Maxakali, Charles Bicalho
Memby ★★★, Rafael C. Parrode
Minha História é Outra ★★, Mariana Campos
A Mulher que Sou ★★★, Nathália Tereza
Noite de Seresta ★★★, ‍Sávio Fernandes, Muniz Filho
Noite Perpétua ★★★½, Pedro Peralta
Panteres ★★★, Érika Sánchez
O Silêncio do Rio ★★½, Francesca Canepa
Telas de Shanzhai ★★★, Paul Heintz
Os Últimos Românticos do Mundo ★★★½, Henrique Arruda
O Verbo se Fez Carne ★★½, Ziel Karapotó

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