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Casulo ★★
Kokon, Leonie Krippendorff, 2020

A apresentação da garota loira na escola é uma bela metáfora para este filme como um todo: aquilo parece arte, se pretende inteligente e engajado, mas é uma repetição eterna dos mesmos clichês e lugares comuns. No caso do trabalho escolar, clichês que são fruto de uma ingenuidade bem intencionada. Em relação ao longa, lugares comuns que existem em todos os filmes adolescentes que envolvem personagens homossexuais. Esta é uma metáfora que provavelmente não foi planejada, mas existe outra que foi muito bem pensada. “Casulo” é uma óbvia referência à transformação de uma lagarta em borboleta, que é como a alemã Leonie Krippendorff enxerga Nora, a protagonista de seu segundo longa-metragem. A personagem, vivida por Lena Urzendowsky, é alguém que precisa atravessar um processo para se libertar. Se é óbvio perceber isto, é bem mais óbvio escolher esse caminho. Numa época em que tantos coming of ages renovam os formatos do despertar gay, por mais que a diretora tente conduzir a história com delicadeza, ver um filme tão “antigo” quanto este nos dias de hoje é uma experiência frustrante.

City Hall ★★★½
City Hall, Frederick Wiseman, 2020

Frederick Wiseman é o mestre da observação. Ninguém consegue chegar aos mecanismos que fazem funcionar as instituições americanas como esse cineasta de 90 anos. Desde 1967, com seu clássico “Titicut Follies”, o diretor aponta suas lentes para alguma dessas instituições e procura tanto a engrenagem quanto o aspecto humano naquela realidade. Quem chega desavisado a “City Hall” pode achar que este novo filme e suas 4h32 de duração são uma propaganda do governo de Marty Walsh, o democrata que é  prefeito de Boston desde 2014. Mas o filme de Wiseman, apesar de mostrar Walsh em vários momentos, discursando, palestrando, comandando reuniões, está muito mais interessado no retrato do funcionamento da prefeitura de sua cidade natal e como isso se torna um manifesto político contra o governo de Donald Trump. O presidente americano é citado direta ou indiretamente algumas vezes, sempre à luz de uma observação negativa. Por mais política que sua filmografia tenha sido em todos esses quase 50 anos de atividade, “Prefeitura“ é um ataque mais frontal, que ganha volume com sua duração e sua sucessão repetitiva de registros internos do movimento nesta instituição. A segunda metade do filme onde os discursos dou mais lugar as conversas e aos personagens, e o diretor reprisa cenas de confissões íntimas que fizeram sua história.

Impedimento em Cartum ★★★
Khartoum Offside, Marwa Zein, 2019

O primeiro longa-metragem da sudanesa Marwa Zein é um ato de rebeldia que registra outro ato de rebeldia. “Impedimento em Cartum” documenta a rotina das mulheres que desafiam as normas militares islâmicas para jogar futebol e sua luta para criar uma equipe nacional feminina. A memória mais imediata é de “Fora do Jogo”, filme de Jafar Panahi que seguia um grupo de mulheres que se disfarçavam para entrar num estádio e assistir a uma partida. Em seu longa, Zein se aproxima de várias mulheres boleiras, tenta entender quem elas são e o que esporte significa para elas e, paralelamente, captura discussões que terminam traçando um panorama político de seu país. Embora seja bastante tradicional em termos de formato e linguagem, os méritos deste documentário vão bem além disso. Num dos lugares mais fechados do mundo, a simples existência deste filme é um pequeno milagre. Principalmente quando ele traz um comentário social como este. Afinal, como dizem os letreiros iniciais “no Sudão, as mulheres não podem jogar futebol nem fazer filmes, mas…”

Miss Marx ★★½
idem, Susanna Nicchiarelli, 2020

Por mais que a diretora Susanna Nicchiarelli tente inserir o máximo de elementos estranhos e transformar esta biografia de Eleanor Marx, a filha de Karl, num filme com “assinatura“, “Miss Marx” ainda é um bastante tradicional e segue várias das regras que a cineasta respeitou em “Nico 1988”. O punk rock que abre e pontua momentos da trama não é suficiente para fazer o projeto sair do lugar do comum. O maior mérito do filme vem, no entanto, justamente de suas características mais convencionais. É como o roteiro, assinado pela própria diretora consegue se aproveitar de cada passagem na vida de Eleanor para introduzir seus comentários políticos, sociológicos e filosóficos sobre os mais variados aspectos. É um conceito de teoria aplicada em vez de simplesmente declamada, um método que não tem nada de realmente novo, mas que valoriza a personagem como pensadora, sem eclipsá-la à sombra do pai ou colocar sua vida pessoal em primeiro plano. Para quem não espera nada deste filme, “Miss Mar pode ser uma surpresa, um filme bem resolvido. Romola Garai, no papel principal, está muito bem.

Mosquito ★★★½
idem, João Nuno Pinto, 2020

Numa das primeiras cenas de “Mosquito”, homens negros entram no mar e seguem até o barco que carrega soldados portugueses, prestes a desembarcar na costa de Moçambique. Eles estão lá não para atacar os invasores, mas para carregá-los nos ombros até a praia. Esta imagem de certa forma antecipa e resume o filme de João Nuno Pinto, uma obra que ressignifica a jornada clássica do herói para refletir sobre a colonização europeia na África. Partindo da história real de seu avô, um soldado que saiu de Portugal, durante a Primeira Guerra Mundial, para combater no continente africano, o cineasta explora um tema que, em suas palavras, ainda é muito romantizado pelos lusitanos, a condição de colonizador. “Acreditamos que fomos os bons colonizadores”, afirma o diretor.

Pinto é neto de um soldado português que foi para Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial e lá fixou residência. Seu pai é moçambicano. Ele é moçambicano, mas nunca se identificou com sua ”herança” de invasor. Esta volta a seu país natal é um acerto de contas com sua própria história e os ritos de passagem a que o soldado Zacarias é submetido, uma investigação histórico-psicológica que Pinto faz desse conflito não apenas, maa também pessoal. Contaminado pela malária já na viagem de navio, o personagem gradativamente entra no campo do delírio e da alucinação e neste estado de percepção alterado ele inicia uma série de transformações. É o momento em que o filme de guerra, ou de bastidores de guerra, ganha um tom existencialista e, muitas vezes, sensorial, uma virada que o diretor orquestra com muita precisão e sensibilidade.

O trabalho de fotografia, que já havia se mostrado extremamente vigoroso, ganha uma nova potência quando a montagem, que delimita as mudanças do personagem, passa a ser desconstruída. A trilha sonora, que combina elementos eletrônicos, incidentais e tribais, ajuda a estabelecer o desconforto a uma narrativa em que somos deliberadamente convidados experimentar apenas a visão, os sentimentos e as percepções do protagonista. “Nós vemos apenas o que ele vê. Nós entendemos apenas apenas o que ele entende”, explica o diretor. Essa estratégia permite uma identificação — novamente o incômodo — por um personagem que carrega contradições e é isto que João Nunes Pinto parece querer instigar.

Neste épico interior, que tem no ponto de partida de “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, não uma inspiração, mas uma alma parecida, um diretor que encontra um lugar bem particular no recente cinema português ao qual ele não se vê tão vinculado. O roteiro, escrito pela companheira do cineasta, a brasileira Fernanda Pacolaw, em parceria com o também realizador Gonçalo Waddington, parte de um argumento de Pinto, que viajou por Moçambique para tentar contemplar todos os lados desta história e daquela que se escreve com letra maiúscula, mas que muitas vezes costuma apagar a versão daqueles para que se aponta o revólver. Para um projeto com tantas ambições, o que mais impressiona é como “Mosquito” encontra caminhos tão propriamente cinematográficos para transitar da narrativa clássica a uma jornada íntima, espiritual e sensorial.

Nariz Sangrando, Bolsos Vazios ★★★
Bloody Nose, Empty Pockets, Bill Ross IV, Turner Ross, 2020

EDIT: uma informação importante chegou pelo Eduardo Valente e mudou radicalmente o texto.

O sonho americano foi parar no balcão de um bar, mas nem este último refúgio para quem convive diariamente com a falência de um projeto econômico está a salvo. É o último dia do “The Roaring 20’s”, um pub de Las Vegas que é ponto de encontro para bêbados, boêmios e solitários. O fechamento do estabelecimento tem um caráter simbólico, como se mais uma porta se fechasse definitivamente para aquelas pessoas que, sob vários aspectos, representam estereótipos do americano médio — aquele que aparece como caricatura em vários filmes de ficção.

Ficção. Essa é a chave para entender às camadas que o os irmãos Bill Ross VI e Turner Ross emprestam a este registro. Os “personagens da vida real” que eles “encontram” são, na verdade, atores interpretando papéis. O cenário desse “bar de Las Vegas” fica em New Orleans, onde a dupla mora. Mas este mecanismo dos diretores não invalida o registro que eles perseguem. Pelo contrário, amplia a força do discurso e o retrato daquele ambiente como o espelho de toda uma sociedade.

Como se filmassem uma procissão de embriagados, os Ross imaginam o ritual de despedida desses homens e mulheres daquele lugar, constroem seus laços com o cenário como depósito de mágoas e bálsamo para vidas frustradas. É mentira, mas é o americano comum contando duas verdades, causos, encontrando amigos, fazendo suas últimas confissões. A câmera abraça essas histórias, dá voz para cada um deles, toma um drink com eles. Entre os registros de Eduardo Coutinho e a reinterpretação do real nos filmes de Abbas Kiarostami, a representação abre espaço para o documentar da maneira mais sincera que as ficção permite.

Pari ★★★½
idem, Siamak Etemadi, 2020

(este texto ficou bem brega e tem uns spoilers, mas traduz bem minha forte impressão deste filme)

A maternidade é um estado — de espírito, inclusive — que dificilmente conseguiria ser descrito ou definido em toda sua complexidade. Siamak Etemadi sabe disso e talvez seja exatamente por este motivo que a jornada de sua protagonista em busca do filho que desapareceu parte de uma situação prática para, aos poucos, se transformar numa viagem quase sensorial. Pari e o marido chegam em Atenas para visitar o filho que deixou o Irã e foi estudar fora, mas ninguém sabe dizer onde ele está. Em poucos minutos, toda a ideia que aquela muçulmana criou de estabilidade, futuro, família é substituída por uma página em branco. Enquanto seu companheiro só consegue pensar em como teve a honra e a confiança traídas, ela é tomada pelo desespero. Além do instinto natural de defender sua “criança”, descobrir o paradeiro de Babak significa também restaurar um projeto de vida, dar sentido para o caminho que ela mesma escolheu. E à medida em que sua angústia cresce e ela, em sua peregrinação, vasculha os mais recônditos cantos da cidade, Pari vai perdendo, pouco a pouco, cada referência que a define: o marido, o véu, os pudores. Seu objetivo é encontrar o filho, mas esta mulher acaba procurando por si mesma. Embora “Pari” seja dedicado a sua mãe, Etemadi afirma esta história de “travessia” espelha sua própria história, de alguém que deixou o passado que o aprisionava para trás para encontrar sua liberdade. A maneira como o diretor constrói esta expedição existencial é bem surpreendente. Em determinado momento, provavelmente na cena em que corre em direção aos manifestantes que confrontam a polícia, onde acredita que está seu filho, Pari vira uma imagem borrada, como se, a partir dali, ela desprendesse de sua condição de esposa submissa, de mulher muçulmana, para se converter em sua própria busca.

(+)

Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.

Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.

Informações básicas: a 44ª Mostra de Cinema de São Paulo acontece online a partir de 22 de outubro e vai até dia 4 de novembro. As informações detalhas sobre o evento e sobre cada produção exibida estão no site da Mostra. A maior parte dos filmes será exibida na plataforma Mostra Play, criada para o evento. Cada filme vai custar R$ 6 e pode ser comprado na própria plataforma com os cartões de crédito Visa e Mastercard. A compra é de um filme por vez e será liberada à meia-noite e um do dia 21 para o dia 22. Quase todos os filmes já poderão ser adquiridos no primeiro dia. Alguns só entram na segunda semana. A partir da data da compra, você tem 3 dias pra dar o play e, a partir do momento em que começa a ver o filme, tem 24 horas para terminar de assisti-lo. O longa “Casa de Antiguidades” vai ser exibido exclusivamente no Belas a la Carte. A compra deste filme será nesta plataforma pelo mesmo valor. Não é preciso ser assinante. Quinze filmes podem ser vistos gratuitamente na plataforma Sesc Digital e outros quinze serão disponibilizados também de graça no SP Cine Play.

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