Madrugada do dia 4 de julho de 1994. Foi quando eu vi “Um Gosto de Mel” pela primeira vez. Na época, já havia algum tempo, a Globo tinha uma sessão de cinema semanal, em que os filmes eram exibidos legendados. Era uma exigência da lei, se não me engano. Foi no “Cineclube” que eu pude conhecer clássicos absolutos de Frank Capra, Billy Wilder e Alfred Hitchcock e também filmes menos óbvios, como esta pérola do cinema inglês dirigida por Tony Richardson, que imediatamente se transformou num dos meus filmes favoritos. Lembro que fiquei encantado com uma série de coisas: 1) como o filme era diferente do que eu entendia até então como cinema clássico, retratando pessoas do povo, uma classe trabalhadora pobre; 2) como apresenta um personagem homossexual com respeito, mesmo mostrando o preconceito e o bullying; 3) com a expressividade dos olhões da protagonista, Rita Tushingham; e, sobretudo, e não sabia muito bem como explicar isso, mas 4) como é um filme que emanava liberdade por todos os poros na maneira como não se amarrava a nada, como os personagens pareciam soltos no mundo, o que era sedutor e angustiante pra mim, em como parecia que tudo poderia acontecer no filme. Mal sabia que estava assistindo e percebendo algumas das características da British New Wave, a versão britânica da Nouvelle Vague, que transformou o cinema mundo afora.

Hoje, 26 anos e muitos ensaios de revisão que nunca aconteciam depois, reassisto “Um Gosto de Mel” e, curiosamente, apesar do filme estar longe de ser nostálgico — pelo contrário, é muito realista e desiludido –, me transporto imediatamente para uma época muito pessoal de descoberta do cinema. E repriso praticamente cada sentimento, mas com um olhar construído ao longo de tanto tempo de cinefilia. Richardson antecipa o retrato duro de uma classe pobre operária, que faria as carreiras de Mike Leigh e Ken Loach, mostrando uma família desestruturada, personagens instáveis, mas faz num filme que parece nunca se subjugar à miséria e ao fatalismo. O diretor parece ter muito carinho por seus personagens — inclusive pela mãe inconsequente interpretada por Dora Bryan, que ele retrata com a dicotomia que pede a personagem, cheia de crueza, mas de graça também. Obviamente, reserva um amor especial pelo “casal principal”, deixando Jo e Geoffrey construírem uma relação genuína, de forma muito espontânea, como se um oferecesse para o outro o abraço e o abrigo que eles precisavam.

A química entre Rita Tushingham e Murray Melvin é fundamental para que isso dê certo. Ela estreava no cinema e ele tinha feito seu primeiro filme dois anos antes com Joseph Losey. Ela ganhou um Globo de Ouro pelo papel, ele foi eleito o melhor ator em Cannes. Os dois muito jovens e muitos dispostos a fazer parecer real a aproximação entre uma jovem sem muitas perspectivas, uma mãe ausente e um namorado passageiro que deixou um presente e ele como o jovem que perambula pelas ruas desde que foi expulso de onde morava por ser homossexual. Ser gay na Inglaterra era considerado crime até 1967. Embora já seja adaptado de uma peça que estreou em 1958, dar o protagonismo a um personagem homossexual e falar abertamente no assunto no cinema foi uma grande ousadia. Para Geoffrey, Jo representa não apenas atenção e respeito, embora ela demonstre muita curiosidade sobre “por que” ele faz aquilo, simboliza a possibilidade do núcleo familiar, que ele não tem.

Rita tem uma personagem apaixonante. Cheia de vida, cheia de questões, fui conquistado de novo. Ela encarna essa liberdade que o filme emana, na maneira como olha curiosa e revoltada pro mundo. Richardson adapta uma peça, mas sua tradução dos códigos e posturas do teatro para o cinema é uma façanha que poucos conseguem. O mergulho no realismo não deixa dívidas à nada que possa ter vindo antes. “Um Gosto de Mel” é essencialmente cinema. E cinema de transformação em vários sentidos. A consciência social da história e a naturalidade com que cada fato da trama e cada escolha da direção ajudam a refletir sobre um aspecto de uma sociedade põem esse filme, que ainda assim não é triste, nem fatalista, num cantinho muito especial na minha estante.

Revisto em DVD, na caixa da Nouvelle Vague Britânica lançada pela Versátil.

Um Gosto de Mel ★★★★½ (revisão)
A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961

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